quarta-feira, 14 de julho de 2010

A sustentável leveza do cão


“Todas as famílias felizes são iguais. As infelizes o são cada uma a sua maneira.” Com essa introdução, inicia o russo Tolstói o seu romance Ana Karenina, publicado, pela primeira vez, em 1873. A personagem principal, aquela que dá o título à obra, é uma aristocrata russa, que supostamente possui alguns dos adjetivos que os simples mortais mais desejam: riqueza, beleza, poder, popularidade. A despeito de tudo isso, Ana Karenina sente-se entediada e vazia. Esses sentimentos só regridem quando Ana Karenina encontra aquele que arrebata a sua alma e faz sua razão definhar, o irresistível oficial Conde Vronski. A partir do caso extraconjugal de Ana com o Conde Vronski a trama se desenrola. Mas não pensem que o romance se reduz a um drama passional. Tolstói vai além. As pessoas que habitam seu romance estão todas ocupadas com o insondável, o intangível da existência humana e passam o romance todo a tentar desvendar o inescrutável da falta a ser.
Na esteira de “Ana Karenina” está “A Insustentável Leveza do Ser” (1983). O tcheco Milan Kundera, no seu capítulo primeiro, alude a Nietzsche e a sua lei do eterno retorno. “...pensar que um dia tudo vai se repetir tal como foi vivido e que essa repetição ainda vai se repetir indefinidamente! O que significa esse mito insensato?” Ao referir-se a Nietzsche e a sua lei logo de cara, Kundera acolhe esse “ eterno retornar”, pois os questionamentos sobre a obscuridade perturbadora da existência de seus personagens são equivalentes àqueles nos quais os personagens de Tolstói estão mergulhados. Inclusive, não é por acaso, que ele ressuscita, através de Karenin, a alma desassossegada de Ana Karenina. Karenin é o nome do cão dos insustentáveis de Kundera: Tereza, Tomas e Sabina. No entanto, Karenin, por não pretender outra coisa, senão ser um cão, faz com que alguns sentimentos de calmaria e alento tenham lugar na mente dos seus donos atormentados.
Pensando ainda no eterno retorno, o que teria a insatisfação e inquietude permanente de Tereza, Tomas e Sabina em comum com as vidas sombrias e errantes de Ana Karenina, Tolstói e Nietzsche? Talvez, a melancolia nostálgica de todo o humano em busca do objeto para todo sempre perdido, do qual ele não tem a menor idéia do que seja e que, mesmo assim, insiste em nomear.
E o cão? O cão não se sabe cão e, muito menos, de onde vem Karenin. Bom para ele. Triste. Muito triste para nós.

p.s. minha inspiração para escrever sobre Ana Karenina surgiu a partir dos escritos corajosos e sensíveis postados em um outro blog também dedicado à insustentabilidade da alma.

Um comentário:

  1. O que me fascina nas personagens de Tolstói e Kundera é sua imensa e problemática humanidade. Muito acima do maniqueísmo simplista do cinema americano, sem mocinhos nem vilões, sem certo nem errado, todos, sem exceção, são tragados pela confusão da vida, num turbilhão emocional digno de uma tragédia grega, onde os mais humanos estranhamente são chamados de deuses...

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