terça-feira, 31 de agosto de 2010

A pedido: casa, casamento e descasamento


A expectativa de que um encontro amoroso seja o início, o meio e o fim – finalidade -das nossas existências, faz com que o término de um relacionamento deixe marcas indeléveis. Não importa o quão satisfeitos estejamos em uma relação, qualquer separação vai atualizar a separação original, fundamental e fundante que experimentamos um dia - daí vem o termo “angústia de separação”. Perceber que a mãe existe além de nós e deseja para além de nós é uma inexorável tragédia. Assim dá para entender por que o afastamento do outro é desproporcional ao sofrimento vivido numa separação, voluntária ou involuntária. Na verdade, o luto é sempre outro e, quando o elaboramos, também é sobre uma perda outra que não esta que acreditamos ser. A sensação é a de ter perdido pai e mãe de uma só vez, quando ainda se é prematuro. É preciso encarar o vazio e o silêncio da casa que foi um dia o palco de promessas onipotentes de completude e suficiência. Vemo-nos regredidos como bebezinhos dependentes dos cuidados do outro para sobreviver. Sentimos que aquele que saiu levou consigo todos os objetos bons – está feliz e credenciado - e que nós ficamos com todos os ruins – estamos tristes e duvidosos. O desconsolo vai e vem. Tentamos, em vão, catalogar pensamentos e sentimentos, numa eterna retroação, mas a veleidade e fluidez com que se apresentam deixa-nos somente aturdidos. Estamos sujeitos a uma bipolaridade reativa. Há momentos de maiores certezas e menos dúvidas, e outros onde a culpa e o arrependimento são os moderadores de tudo. À decisão de se separar estará irremediavelmente alienada a ambivalência entre o conhecido e o desconhecido. Inconstantes, imprevisíveis, instáveis, indefiníveis, incertos, incoerentes... Poderia utilizar mais uns dez adjetivos “ins” para descrever as ideias arbitrárias que culminam num “loop” de emoções daqueles que optam por não mais dividir a mesma casa. Mas, a complexidade da questão é que nem um desses adjetivos ou mesmo todos eles juntos dariam conta de nomear essa “coisa” que dá dentro da gente após uma separação. Como bem disse Guimarães Rosa: “muita coisa importante falta nome”.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Aeroportos


Descobri que aeroportos exercem um certo fascínio sobre mim. Quando voava, não via a hora de mudar de profissão, mas devo admitir que os períodos em que passava dentro dos aeroportos me agradavam. Algumas vezes, tinha que ficar de reserva no aeroporto, caso precisasse assumir o voo de algum colega que gostava menos de voar do que eu. Quando não acionada para voar, a profissão não me incomodava. Naquela época, todos os voos, com exceção da ponte-aérea, saíam de Cumbica. Aproveitava para ler, tomar café, estudar e observar. Havia uma só livraria, e era lá que passava algumas horas da minha reserva. Já sabia de cor os títulos que oferecia, cheguei a ler, aos poucos, um livro do Veríssimo inteiro, em pé, dentro da loja.
Hoje, não mais comissária de bordo, ainda os aeroportos me alegram. Gosto do cheiro de perfume que exala das lojas duty free, das pernas das pessoas se movimentando para lá e para cá, das bocas se mexendo freneticamente, da atmosfera que se cria em torno das viagens. Fico atenta aos olhos fixados nos displays de informações, aos ouvidos que tentam ter vida própria, para poder escutar os anúncios da mocinha de voz estridente em meio ao burburinho de outras vozes dissonantes. Às vezes, há longas esperas. Gente que faz de conta que lê, que ouve música, que come, que trabalha, que dorme; todas iniciativas vãs para que se distancie o tempo entre o agora e o depois. Vive-se um período de considerável ansiedade até que as rodas do trem de pouso se despreguem da terra e, mais ainda, que toquem a terra de novo.
Acho que entendo o meu fascínio por aeroportos, que é o mesmo de tantos outros que se submetem a passar por tudo isso como se estivessem sob o signo de uma necessidade. A felicidade, no imaginário dos sujeitos neuróticos, está sempre alhures.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Morte e morrer

Quando acreditava que meus ídolos já haviam tido os seus apogeus criativos, e que de agora em diante o que viesse era lucro, Gilberto Gil me surpreendeu com a canção de sua autoria “Não tenho medo da morte".
De forma poética, mas nada pueril, Gil vai desfazer o pretenso parentesco que existe entre a morte e o morrer. A morte está sempre à espreita dos seres de reprodução sexuada. Só que em alguns momentos da vida, ela se presentifica com mais voracidade e, para quem duvida mais do que acredita, é sempre um tempo de reflexão e solidão. Gil, agora um pré-septuagenário, retrata, quase sem abstrações, a angústia que dele se apropria quando vislumbra o ato de morrer, ao mesmo tempo em que o estado morte lhe causa senão indiferença. Sei que a discriminação entre a morte e o morrer não é uma sacada original ou genial. O inédito da coisa é musicar o tema e fazê-lo bem; e belo.

“Não tenho medo da morte

Não tenho medo da morte
Mas sim medo de morrer
Qual seria a diferença
Você há de perguntar
É que a morte já é depois
Que eu deixar de respirar
Morrer ainda é aqui
Na vida, no sol, no ar
Ainda pode haver dor, hein
Ou vontade de mijar
A morte já é depois
Já não haverá ninguém
Como eu aqui agora
Pensando sobre o além
Já não haverá o além
O além já será então
Não terei pé nem cabeça
Nem fígado, nem pulmão
Como poderei ter medo, hein
Se não terei coração?
Não tenho medo da morte
Mas medo de morrer sim
A morte é depois de mim
Mas quem vai morrer sou eu
Derradeiro ato meu
E eu terei de estar presente
Assim como um presidente
Dando posse ao sucessor
Terei que morrer vivendo, hein
Sabendo que já me vou
Aí nesse instante então
Sofrerei quem sabe um choque
Um piripaque, um baque
Um calafrio ou um toque
Coisas naturais da vida
Como comer, caminhar
Morrer de morte matada
Morrer de morte morrida
Quem sabe eu sinta saudade, hein
Como em qualquer despedida.”

Gilberto Gil em Banda Larga Cordel, lançamento de 2009

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Silêncio

Juan Nasio, psicanalista de orientação lacaniana, debruçou-se sobre o tema em seu livro “O Silêncio na Psicanálise”. Nasio consagra um lugar privilegiado ao silêncio, estado cada vez mais raro no mundo contemporâneo. O silêncio não se faz somente na inexistência de ruídos. Segundo o Houaiss, silêncio é a privação, voluntária ou não, de falar, de publicar, de escrever, de pronunciar qualquer palavra ou som, de manifestar os próprios pensamentos. Difícil alcançar este estado, não é? Todos têm acesso a recursos que te incitam a nunca silenciar. O silêncio virou o bem mais precioso que alguém pode almejar, mesmo que não tenha consciência disso. O grande embaraço das nossas questões resume-se, no fim das contas, à impossibilidade de silenciar. Na era vitoriana, quando do primado da associação-livre de Freud, desejava-se o oposto. O nome da técnica de Freud era “talking cure”, isto é, a cura pela fala, pela conversa, por tudo aquilo que a língua pudesse pronunciar. Acreditava-se que aos pensamentos deveria ser dado um destino, um endereçamento. Será que ainda podemos falar desse tipo de repressão nos dias de hoje? Hoje, fala-se pelos cotovelos, fala-se sozinho, fala-se dormindo. O grande filão do mercado são os diversos aparelhos que nos permitem falar. As propagandas são claras: “fale” até mil minutos por tantos reais. A demanda é a de falar, não importa o quê ou para quê; por computadores, celulares, e outros tantos “gadgets” que não conheço.
O problema dos nossos dias, ao contrário daqueles do início do século passado, não estaria, então, na incapacidade de calar? No mundo pós-moderno, na efervescência das falas vazias pode estar alojada a nossa ruína... Algo, como propõe Nasio, a se pensar.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Gosto do Pessoa na pessoa

Caetano, em sua iluminada canção "Língua" faz uma declaração de amor à língua portuguesa. Defende em seus versos sua concepção de Pátria: "minha Pátria é minha língua". Demonstra a riqueza da língua portuguesa através dos poetas que se dedicaram à captura das palavras perfeitas para compor suas obras, como Camões, Noel, Pessoa, Chico.
Aí vai um pedacinho da letra de Caetano, que é enorme. Mas, como não é difícil perceber, só esta estrofe já dá muito o que pensar.
"Língua
Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões
Gosto de ser e de estar
E quero me dedicar a criar confusões de prosódia
E uma profusão de paródias
Que encurtem dores
E furtem cores como camaleões
Gosto do Pessoa na pessoa
Da rosa no Rosa
E sei que a poesia está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior?..."

Para quem, assim como Caetano, gosta do Pessoa na pessoa, aqui vai a dica: a partir de amanhã, 24/08, no Museu da Língua Portuguesa, o homenageado será o poeta português na pluralidade de seus heterônimos. Melhor impossível!

Antes que o mundo acabe (2009)

Este é o título do filme da diretora gaúcha Ana Luiza Azevedo, uma produção da Casa de Cinema de Porto Alegre. A película ganhou o Prêmio Itamaraty na Mostra de São Paulo na categoria melhor filme brasileiro. Prêmio merecido. O tema é tratado com uma delicadeza feminina, dá para perceber de longe que teve o toque de uma mulher ali. Os jovens atores são brilhantes e promissores. É um filme jovem que trata de temas da adolescência na contemporaneidade. Há alguns diálogos que retratam essa mudança dos tempos. O melhor deles é quando o guri de quinze anos toma um porre daqueles e passa mal. O padrasto não chega a repreendê-lo, mas demonstra sua decepção com o estado de embriaguez do filho. O adolescente, então, pergunta ao homem adulto: "Você nunca tomou um porre?" Ao que o homem responde com categoria: "Na tua idade não." E o guri com aquela rapidez dialética coerente com a sua época ataca: "Por acaso, com a minha idade você recebia e-mails?"
Nem é preciso narrar a expressão do adulto, o homem sai de cena mudo e ensimesmado. Nós, na platéia, também.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Surpresa no cinema

Domingo, quatro e meia da tarde, ligo para minha parceira de cinema dizendo que estou saindo de casa para pegá-la. Avisada desde o dia anterior, ela sabia que haveria uma única apresentação do filme que eu esperava ansiosamente que entrasse em circuito às seis horas. O filme? “Só dez por cento é mentira”, documentário sobre Manoel de Barros - poeta mato-grossense.
Sei que esse horário é um tanto inusitado, pois costumamos pegar as últimas sessões de cinema. Claro que minha amiga não estava pronta. Insistiu para que assistíssemos a um outro filme, reclamou, repetiu que eu era chata, etc. Eu bati o pé, e bem reacionariazinha, disse: eu te avisei ontem sobre o horário, não tem desculpa. Fui.
Ficamos de mal por uma semana. Na verdade, só até a próxima sessão de cinema. Mas o fato que faz valer contar essa história não foi esse. Acontece que ao entrar na sala do cinema ainda toda iluminada, passo por alguém mais adiantado que eu, que sentado sozinho numa poltrona do corredor, devorava o livro do Manoel de Barros; uma edição especial que estava esgotada nas livrarias. Curiosa, de soslaio, volto meu olhar para aquele livro, meio indignada por estar na posse de outras mãos que não as minhas, e reconheço o proprietário das mãos que seguravam aquele objeto precioso: um amigo de alma que não via há longa data. Chamei seu nome. Foi surpresa em dose dupla. Ficamos os dois numa felicidade só. E ainda por cima, ambos compartilhando da mesma paixão pelo querido poeta de cabeleira branca.
Saímos do cinema como se tivéssemos tirado a sorte grande. Fomos tomar um café, contar um pouco do que aconteceu durante os quase seis anos em que não nos víramos e marcar os próximos encontros.
Isso foi há uns seis meses. Desde lá nos encontramos, pelo menos uma vez por semana. Como um obsessivo consegue infalivelmente enlaçar o outro nas suas idéias obsessivas, ele aderiu ao meu cinema “sempre aos domingos”. A dupla virou trio. E o melhor de tudo isso, quando o assunto é cinema, meu amigo consegue ser mais pontual do que eu. Tudo de bom!

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Chão de giz

Meus ouvidos dedicam-se mais às letras das composições do que às suas melodias. Já há alguns anos, o Juca*, em botecos com música ao vivo, delira quando o cantor dedilha as primeiras notas de "Chão de giz". Aprendi a delirar com ele. Tenho "Chão de giz" em umas quatro ou cinco versões, sem contar o LP com a carinha do Zé novinho, deste eu já tinha um e comprei outro, vai que um estrague. Como ia dizendo, a mesma música toca aqui em casa com o Zé Ramalho sozinho, com a parenta dele, com os dois juntos, com Alceu Valença, com Geraldo Azevedo; tem para todos os gostos.
Interpretações não faltam. O que falta para mim é decifrar o enigma que é essa letra. Alguém tem idéia do que possa ser “espalho coisas sobre um chão de giz”, ou “eu vou te jogar num pano de guardar confetes”, ou ainda, “disparo balas de canhão, é inútil pois existe um grão-vizir”?
Já especulei o “giz” análogo à cocaína, ou que toda a criação tivesse se originado numa bem sucedida viagem de ácido. Vou ficar sem saber. Uma vez, quando tive a oportunidade de perguntar - Zé esteve no mesmo avião em que eu era tripulante - não rolou, pois ele estava aterrorizado de medo de voar e um temporal daqueles de filmes de cemitério, com raios, trovões e ventos, provocava uma forte turbulência, impedindo qualquer aproximação.
Se alguém souber do que se trata ou tiver sugestões, por favor, comente!
*namorado da Dani Sabino

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Frio, vinho e um poeta maldito

"Embriaga-te

Deves andar sempre bêbado.
Tudo se resume nisto: é a única solução.
Para não sentires o tremendo fardo do Tempo que te despedaça os ombros e te verga para a terra, deves embriagar-te sem cessar.
Mas com quê?
Com vinho, com poesia ou com a virtude, a teu gosto.
Mas embriaga-te.
E se alguma vez, nos degraus de um palácio, sobre as verdes ervas duma vala, na solidão morna do teu quarto, tu acordares com a embriaguez já atenuada ou desaparecida, pergunta ao vento, à onda, à estrela, à ave, ao relógio, a tudo o que se passou, a tudo o que gemeu, a tudo o que gira, a tudo o que canta, a tudo o que fala, pergunta-lhes que horas são:
"São horas de te embriagares!"
Para não seres como os escravos martirizados do Tempo, embriaga-te, embriaga-te sem cessar!
Com vinho, com poesia, ou com a virtude, a teu gosto."


Charles Baudelaire (1821-1867) em "Poesia mais-que-perfeita"

domingo, 15 de agosto de 2010

Reflexões de um liquidificador - Dir. André Klotzel - Brasil (2010)

Durante anos, ouvi Cazuza em sua delicada "Codinome Beija-flor" e tinha a maior curiosidade em saber o que ele queria dizer com: "...dizer segredos de liquidificador...". Sempre profético, desde "Brasil", Cazuza pressagiava o rumo da história brasileira da década de 90, no meu entender. Lembro que esta era a trilha sonora de abertura da novela "Vale Tudo", folhetim que comungou em cima com a letra do poeta. Hoje, assisti ao "Reflexões de um liquidificador", com direito à apresentação do filme pelo próprio diretor, André Klotzel em carne e osso à frente da tela, figura hilária e irreverente. Desejei perguntar a André se a escolha do nome de sua película tinha algo a ver com o "codinome" de Cazuza, minha timidez não me deixou, ainda bem. Presente de domingo, o talentoso Selton Mello, desta vez, surpreendentemente no papel de liquidificador. Segredos, reflexões, seja lá o que for de liquidificador... é muita abstração!

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Ah... Clarice!


"É. Eu me acostumo mas não me amanso. Por Deus! Eu me dou melhor com os bichos do que com gente. Quando vejo o meu cavalo livre e solto no prado - tenho vontade de encostar meu rosto no seu vigoroso pescoço e contar-lhe minha vida. E quando acaricio a cabeça de meu cão - sei que ele não exige que eu faça sentido ou me explique."

Clarice Lispector em "A Hora da Estrela"

Voltar para casa


Acho que viajar, no fundo, é sempre um desejo de des - identificaçao. Viajar é esquecer-se de si, é abandonar-se. Quando viajo não quero me levar junto. Anseio por uma metamorfose. Busco no anonimato uma entrega, uma oportunidade única de ter minha identidade dada somente pelo número do passaporte. Observo os rostos estranhos que vejo passando nas ruas desconhecidas. Adoro me perder em meio às variadas construções, nos desvios e desvãos das palavras pronunciadas em línguas maternas que não a minha. O “unheimlich” - texto de Freud, que quer dizer “estranhamente familiar" - que mora dentro de mim fica ávido para se praticar. Um distanciamento de hábitos e horários, uma ousadia do paladar em buscar outros sabores e texturas. O velho cansado que habita em nós vê-se convocado a se retirar. Caminhamos sem perceber as distâncias percorridas, pois quem decide a hora de parar são os olhos. Há um tempo de suspensão das questões cotidianas, burocráticas e protocolares. Há um certo suspense em torno de cada amanhecer. Rejuvenesce-se durante uma viagem. Olhos opacos ganham novo brilho. É tempo de beber de outras fontes, experimentar se deixar ser uma página em branco levada pelo vento. Preencher a vida com uma história outra, que não aquela já tão batida.
A questão é voltar para casa. Temos a sensação que se havia incorporado um santo dentro da gente e que, num só golpe, abandona subitamente o corpo. É isso mesmo, como se corpo e alma se separassem por um tempo e tivessem que tomar fôlego para se reencontrar.
Não se sabe onde se está, que horas são, por onde recomeçar. A mala ainda fechada no meio da sala, um cansaço de anteontem, uma estranheza da casa, da cama, do quadro na parede. Quer-se a suspensão de volta, aquele estado de alienação que nos deixou meio entorpecidos durante a viagem. Tudo isso ficou para trás, é só colocar os pés em casa e dá-lhe realidade! Trabalho, contas para pagar, geladeira vazia, secretária eletrônica cheia, horário do relógio que não bate com o do teu corpo, teu corpo que não cabe dentro dele próprio; sem falar nos bichos que sentem tudo isso às avessas, sem terem colocado seus focinhos para fora, exigem um dono novinho em folha.
A aventura da viagem começa, de fato, agora.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Pessoa e Lacan

Pessoa não economizou em adjetivos pejorativos ao depreciar um humano, nesse caso ele próprio. Em "Poema em Linha Reta" o poeta se apresenta como um porco, vil, mesquinho, ridículo, parasita; enquanto qualquer um que não seja ele próprio, um ideal de virtude. Totalmente maniqueísta sua forma de ver a si e a alteridade, concordo. Mas, prá bem da verdade, não é assim que nos sentimos toda vez que refletimos sobre nossa condição? Se pensarmos que sobrevivemos ao nosso nascimento somente por que um outro se fez presente e permitiu que sobrevivêssemos, compreenderemos por que raios carregamos essa sensação de precariedade e insuficiência para sempre, ainda que, ao longo da vida, nos propomos a colecionar credenciais, medalhinhas e trofeuzinhos, para nos convencer do contrário. O aforismo máximo de Lacan, que delineia sua teoria, fala disso: "o desejo é sempre o desejo do desejo do Outro".
Vamos ao poema.


"Poema em Linha Reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza."

Álvaro de Campos
Extraído de "Fernando Pessoa - Obras Poéticas", edição de 1972

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Sutilezas da língua

Sempre achei o inglês britânico lindo, puro, as sílabas bem pronunciadas num ritmo melódico, erudito e elegante. Nos filmes, uma maravilha. Comum suspirar quando se ouve um "today", "can" ou "wait" ditos com os "as" pronunciados no mesmo som do "a" do nosso alfabeto. É lindo o sotaque, remete-nos a Shakespeare, Oscar Wilde, Virginia Wolf. De repente, passa-se a conviver com os ingleses, que não são nem os professores dos programas de intercâmbio e nem uma das famílias que recebem os estudantes. Aí, a coisa muda de figura. Aquela musicalidade toda na pronúncia das palavras torna-se um "nightmare", como costumam repetir os ingleses para se referir a fatos ou pessoas horríveis. Na primeira vez que eles falam contigo e tu não entendes, nem com o contexto dado, a gente lembra daquelas expressões salvadoras que aprendemos ainda no colégio: "pardon?", "sorry?", "could you repeat, please?". Numa postura de humilde educação e simpatia. Isso acontece muito na hora do consumo. De um lado o estrangeiro ávido por aquele objeto, de outro o comerciante convocado a por dinheiro no caixa. Todos sempre se entendem. O bicho pega é quando se está atrasado, nervoso ou com fome; e, aquele mesmo sotaque, outrora lindo, te impede de entender obviedades cotidianas. Aí, sem intenção de ofender, mas num ato de puro desespero a gente fala: "what?" E isso, no reino unido da rainha e seus príncipes, é motivo de desunião. Separa uns dos outros, os educados dos mal-educados. Na hora, dá vontade de mandar o proprietário daquele "accent" para aquele lugar e voltar correndo para casa. Agora, se tu estiveres em boa companhia, pessoas espirituosas, desarmadas e descomplicadas, estes episódios podem render muitas risadas e imprimir na memória um gosto de quero mais.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

A casa de Freud


Foi nesta casa que Freud passou o seu último ano de vida – de 27 de setembro de 1938 a 23 de setembro de 1939. Como dá para ver, é uma belíssima e imponente casa na elegante rua Maresfield Garden de número 20 em Londres. Acontece que a casa da rua Berggasse em Viena, onde Freud viveu e atendeu seus pacientes por quarenta e sete anos, teve que ser deixada por ele e sua família à revelia. Freud resistiu bastante tempo à perseguição nazista quando comparado com seus colegas sionistas. Muitos psicanalistas judeus já tinham começado a debandar em 1933, quando tiveram seus trabalhos publicamente queimados na Alemanha. Freud se recusava a fugir, mas quando a Áustria foi anexada à Alemanha ele não viu outra saída. Chegou em Londres em 06 de junho de 1938 e alugou uma outra casa até se mudar para esta. Depois de sua morte, aos 83 anos, a casa continuou sendo ocupada pelos seus familiares. Anna Freud morreu em 1982 e, a seu pedido, a morada do pai da psicanálise e também seu pai foi transformada em um museu e aberto ao público em julho de 1986 - todos os objetos estão irretocavelmente conservados: livros, quadros, divã, poltrona, cinzeiro, tapetes. Durante esse período Freud estava indignamente doente; o câncer em seu palato, que havia começado há dezesseis anos, o castigava sem dó nem piedade, infligindo-lhe mal-estar constante e lancinante dor. Martha, sua mulher, Anna, Minna Bernays, sua cunhada querida, com quem ele tinha mais afinidades do que com sua mulher, e a governanta Paula Fichtl acompanharam Freud no martírio de sua doença. Intrépido diante de seu calvário, Freud submeteu-se a dezenove cirurgias empíricas e ineficazes, intercaladas por inócuas sessões de radioterapia, sem interromper sua produção intelectual. Foi sob essas condições que Freud escreveu uma de suas obras mais importantes: “Moisés e o Monoteísmo”. Além deste, Freud deixou inacabado “Outline of Psychoanalysis “. No mesmo ritmo em que escrevia seus trabalhos, recebia seus pacientes. Os pacientes de Freud sofriam as dores da subjetividade. Freud sofria o suplício de sua doença e as agruras da guerra, que numa dessas, levou uma de suas filhas. Sua família, especialmente Anna, admiradora e propagadora incondicional dos fundamentos teóricos do pai, sofria a iminência de sua morte. O “mal-estar na civilização” estava literalmente declarado. Freud sofria na carne a dor que seus pacientes referiam sentir na alma e na alma a dor de tudo isso junto. Lutou bravamente contra a miséria e a mediocridade humanas até seus últimos dias. O seu legado, tão coerente entre teoria e prática, pede, no mínimo, que tenhamos coragem.