Clarice Lispector sofria de insônia. Acho que ela debutou nas pílulas para dormir. Contam seus amigos mais próximos, que muitas vezes ela exagerava na dose. Ficava sem dormir à noite e durante o dia caía pelas tabelas.
Quem padece desse mal sabe muito bem o que é isso. Engraçado perceber que quando investigamos a intimidade dos artistas, a troca do dia pela noite é fato trivial.
Não sei o que acontece, mas a noite é inspiradora, a solidão das horas vazias, o barulhinho do relógio na parede, a escuridão lá fora. A impressão que tenho é que durante a noite estamos mais perto do nosso inconsciente, esse buraco negro intangível que não controlamos, pois voluntariosamente autônomo quando “ele” quer dar as caras. Freud dizia que o homem havia sofrido três quedas narcísicas drásticas: a primeira, quando lhe é revelado que a terra não é o centro do universo, a segunda quando Darwin diz que somos parentes da macacada e a terceira quando o próprio Freud, a partir da descoberta do inconsciente, afirma que não somos donos da nossa própria casa - é o inconsciente que manda e desmanda. Se Freud vivesse agora iria saber que ainda há uma quarta queda narcísica:.. há, há, há, o código genético de um humano está mais próximo dos ratos do que dos gatos! Quem diria? Nosso DNA é mais parecido com o dos bichos repulsivos que vagueiam pelos esgotos do que com o dos inocentes gatinhos peludos que são predadores dos primeiros? Que doideira! Não a constatação dos cientistas! Mas, como de Lispector e insônia vim parar em ratos? Hum, tenho uma vaga idéia, é que me lembrei do Chico, insone incorrigível. Em minha opinião de fã incondicional, acredito que a sua mais antenada e criativa composição desse século seja “Ode aos Ratos”. Nessa música Chico, inspirado pelas descobertas científicas sobre os genomas, lembra aos pobres humanos que dentro deles habita um roedor nada seletivo que anda pelas sarjetas e come o que tiver pela frente, com seu “focinho gelado e couraça de sabão”.
Em um show de Mônica Salmaso num tributo a Chico que assisti, ela conta algumas conversas de bastidores.
Dizem que o Chico antes de concluir a música, ligou para o Paulo Vanzolini, músico e biólogo apaixonado, para perguntar como eram os ratos, pois queria ser o mais fiel possível quando fosse descrevê-los. O diálogo se deu mais ou menos assim:
- “Oi Paulo, aqui é o Chico, tô ligando porque sei que você que tem a maior afinidade com bichos e precisava que você me descrevesse como são os ratos, pois estou compondo uma música sobre eles.”
- “Ah Chico, você que já inventou tantos adjetivos para falar das mulheres, então mente aí qualquer coisa para os ratos.”
- “Não dá Paulo, pelos ratos eu tenho o maior respeito...”
Ah, esse Chico, além de tudo é espirituoso...
Voltando à insônia, os ratos são notívagos por motivo de sobrevivência, para fugir dos predadores, pois à luz do dia são presas fáceis. Seguindo esta lógica, estariam os insones, ao permanecerem de vigília, também fugindo de algo, seria, talvez, dos desígnios do seu próprio inconsciente? Boa pergunta. Enquanto isso, depois dessa revelação da ciência, os insones podem ficar mais sossegados. Não estão sozinhos em suas noites longas e não estão acompanhados por meros desconhecidos. Seus companheiros são fraternos. Pois é. Os seus “irmãozinhos” de nariz gelado, dentões afiados, orelhinhas pontudas e passinhos rápidos, na calada da noite... estão bem felizinhos e acordados. Muitos deles até assombrando os sonhos dos infelizes insones quando, por exaustão, conseguem dar uma cochilada.
Lembrei agorinha do “Homem dos Ratos” – caso paradigmático de Freud sobre a neurose obsessiva -, mas isso já é assunto para outra hora.
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