quarta-feira, 19 de março de 2014

Carta à Claudia

Quase todos os dias, com a velocidade das informações que chegam por todas as frentes, ficamos sabendo de coisas horripilantes que acontecem mundo afora. Não bastasse a escrita, ainda temos a brutalidade das imagens. Algumas colam de tal forma na retina que nem o cansaço e o sono são capaz de apagá-las. Estamos em março, e já neste ano aconteceram alguns fatos que me deixaram perplexa, indignada e deprimida, por fim. Mas não sei muito bem por que o caso da Claudia Silva Ferreira acendeu em mim, além desses sentimentos, dois outros: culpa e vergonha. Assim, queria me desculpar contigo, Claudia, que sou Ferreira como tu, por ter nascido numa cidade do sul, numa vila com nome de rio e não de planta. Por ainda festejar meu aniversário, apesar de ser dez anos mais velha que tu. Por ter frequentado universidade, roda de intelectuais, deitado em divãs; mas não ter aprendido a te proteger. Tu, que tinhas só 38 anos, trabalhavas como faxineira em um hospital, moravas numa comunidade com nome de planta em Madureira, tinhas quatro filhos, ajudavas tua irmã a tomar conta de mais quatro crianças e ias fazer 20 anos de casada. É, tu casaste com 18 anos, mocinha ainda já tinhas casa, marido e filhos para cuidar. Mas te distraiste anteontem quando foste comprar pão. Balas displicentemente perdidas trocadas entre policiais e civis atingiram teu corpo. Depois, além dos ferimentos causados pelas balas, caíste do porta-malas do camburão que te socorria e foste arrastada por 250 metros em uma avenida movimentada. Morreste antes de chegar ao hospital, sarcasticamente lugar onde ganhavas teu pão. Pois então, Claudia, com a tua morte prematura, fizeste muito mais pelo teu país do que eu. Com a tua morte, Claudia, denunciaste mais um ato criminoso no lugar onde vivias e onde ainda teus filhos continuarão a viver. Não deixaste nenhum rastro de dúvida sobre o que fizeram contigo. Mostraste para todo um país como são tratadas as pessoas que como tu, nasceram, cresceram e deram à luz no morro. Abriste mais uma gaveta mal cheirosa que expõe a podridão repugnante do nosso sistema. Meu pesar não muda a tua história, sei disso, mas alivia momentaneamente a minha vergonha perante ti.