Certa vez, articulei o poema de mesmo nome do título com o tema da neurose obsessiva, com a idéia de ilustrar uma questão crucial dessa estrutura. Um dos sinais evidentes no discurso dos obsessivos é a procrastinação. Uma ruminação de pensamentos inócuos e repetitivos que ficam circulando em todos os espaços da mente e que se espalham pelo corpo também. É de cravar. Pensa-se no que poderia ter sido, no que se deveria ter dito e no que não se deveria ter ouvido – todas representações do passado. Ou então em como será daqui para frente, o que fazer, o que falar, no que se transformar – tudo representações do futuro. Bom, já deu para perceber que o que falta nesse jogo estéril e histérico de quem padece dessa neurose são as representações do presente. O "aqui" e o “agora” foram interditados, ou estão adiantados ou atrasados no tempo do obsessivo. Resta, assim, se lamentar e se consolar com Pessoa, que, sem intenção alguma, faz paródia com o neurótico obsessivo.
“Adiamento
Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas em um edital...
Mas por um edital de amanhã
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...
O porvir...
Sim, o porvir...”
Fernando Pessoa, em Tabacaria e Outros Poemas 14/04/1928
Acho que esse cara está precisando agendar uma consulta. Com urgência. Se ele me ligar amanhã, depois de amanhã eu vou ver se tenho horário...
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