terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Ano velho


Há muito que o término de um ano e início de outro deixou de ser significativo para mim. Nada pessimista ou desesperançoso, ao contrário. Todas aquelas expectativas das quais o novo ano era tributário, provocavam uma falsa sensação de onipotência nos mortais. O ano que passou raramente era franqueado com elogios e o vindouro carregava inesgotáveis promessas de felicidade.
Imbuíamo-nos de resoluções para o próximo ano. Era nele que nosso sucesso iria desabrochar, que íamos ter um corpo mais sarado, começar a fazer cursos por diletantismo, experimentar o novo de qualquer natureza, deixar maus hábitos, adquirir bons, ler aquele clássico que faz parte dos “x” livros que devemos ler antes de morrer, telefonar para aqueles que fizeram parte do nosso passado e que insistem em se manter no presente, recrutar novos amigos, melhorar de emprego, viajar sem fronteiras, limpar e organizar aquela pilha de CDs, trocar de carro, aprender a tocar um instrumento, tomar a iniciativa de dar o primeiro beijo; enfim, desbravar um novo mundo e tingir sua vida com ele.
Acontece que, prá bem da verdade, as vontades que têm muito pouca praticidade, acabamos por esquecê-las. Então, como bons seres utilitários que somos, postergamos mais uma vez nossos desgastados desejos para o próximo ano e por aí vai.
Faltando poucos dias para terminar 2010, tenho uma proposta diferente, por que não apostarmos na felicidade ainda dentro desse ano? Mais ou menos assim: “antes de terminar o ano eu vou me revelar, tomar um porre de champanhe bom, escrever aquela carta de amor, dar aquele telefonema, começar a ler o tal clássico, dizer que amo sem a garantia de reciprocidade, beijar sem pudor, brigar de vez ou fazer as pazes...” Assim, se nada disso der certo, você joga a responsabilidade para o senhor cronos, aquele que vai olhar pelo seu emprego, carro, limpeza e organização. O ano novo é sempre competente nesses assuntos. Agora, para estas outras coisas que não levam a lugar nenhum, use o ano velho. Simples, aproveite para arriscar neste restinho de ano já que o próximo está profeticamente designado a dar um jeito mágico em tudo. Não há o que temer. Feliz Ano Velho!

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

"Já morei em tanta casa...


"Já morei em tanta casa... ... que nem me lembro mais”, cantava Renato Russo no início dos anos noventa. Na época, havia um par de anos que morava em São Paulo e já pensava que a música se aplicava a mim, pois pipocava de uma morada a outra com certa frequência. Meus endereços e números de telefone mudavam tanto que minha família já não usava mais caneta para anotá-los, adotaram o lápis e a borracha. Quase trinta anos depois, me dou conta de que naquela época habitei sim mais casas do que gostaria, mas lembrava de todas elas. Hoje, acredito que algumas devem ter sido sequestradas da memória ou estão lá nos recônditos do meu inconsciente. Entre essas, há uma em especial, que mesmo que quisesse esquecê-la, tem vida própria e volta-e-meia aparece para mim em forma de sonhos, fisgadas ou cheiros, esteja eu perto ou longe de seu sítio. É a casa onde passei minha infância. Esta casa de madeira, verde com janelas e portas marrons, impregnou-se em mim de uma forma, que nem os mais sofisticados achados da ciência são capazes de fazerem-na ir embora. Mas vamos ao presente. Por ora, habito uma casa antiga, com madeira pesada no chão, pé direito alto, moldura desenhada nas janelas e portas, paredes largas, estrutura de pedras. Alguém caminha na sala e um rangido invade a casa toda, como se a madeira emitisse suspiros distantes. Pelas portas e janelas poderia atravessar um gigante. A casa impõe-se à leveza embrutecida da modernidade. É como se a anciã ranzinza dissesse, não adianta me decorar com móveis e objetos de vanguarda, eu sou uma casa velha, amarelada pelo tempo, sóbria e endurecida pela história. No subsolo, há mais da mesma casa, um porão que mais parece uma masmorra, o tal do Keller. Acho que Keller foi uma das primeiras palavras no idioma que aprendi. Todas as casas antigas têm um e se fala dele com certa deferência. No meu livro de alemão tem um capítulo destinado a esse espaço. É uma espécie de entidade a ser respeitada. Para mim, era somente um lugar inóspito, úmido, sem aquecimento, janelas ou madeira cobrindo o chão. No meu entender, lá se colocavam coisas velhas e inúteis que os moradores queriam tirar de vista, mas que não queriam se desfazer de jeito nenhum. Mas também é um depósito de comida, muita comida e bebida. Sacos e mais sacos de batatas e cebolas, litros e mais litros de água e cerveja. Os mantimentos que ficam armazenados nesse porão dá a impressão de que para os alemães uma famigerada guerra está sempre à espreita. Mario Quintana dizia que as casas, assim como as pessoas, possuem alma. Acredito que sim, mas não todas. Não me lembro mais de todas as casas por onde passei, mas saberia reconhecer em quais habita uma alma. Aqui é uma delas. Ancestrais portas e janelas, surrado chão de tábuas que estremecem ao menor toque, paredes grossas e calejadas dialogam noite e dia.

sábado, 18 de dezembro de 2010

A sustentável leveza da mala


Viajaria no dia seguinte e ainda não havia feito a mala. É no singular mesmo, não importa se serão quarenta e cinco dias ou dois, a mala é uma só. Sob certos aspectos, isso poderia significar estar subjetivamente mais afinada com o comportamento masculino do que com o feminino. Porém, não é bem assim. Não sou econômica com o tempo que gasto, na verdade ganho, no meu banho, tomando o meu café ou lendo o meu jornal. Minha economia resume-se às coisas que carrego dentro de uma mala. Tanto faz ir a Porto Alegre para um fim-de-semana ou aventurar-me por um mês em um lugar gelado. Porto Alegre, então, nem se fala. Lá, uso e abuso das roupas e calçados da minha irmã. Geralmente, vou só com a roupa do corpo. Pura preguiça e, claro, é muito bom o aconchego de ir para uma casa que sinto como se fosse a minha. Antes mesmo de ler Borges, já viajava “leve”. Não por consciência poética. É preciso nascer com alma para isso. Mas pelo fato de que não ter que pensar no que levar e carregar poucos pertences me proporciona uma deliciosa sensação de liberdade e independência. Aliás, meu estilo, ou falta de, já deu o que falar. Uma vez, no salão de beleza, sentada esperando para cortar o cabelo, o cabeleireiro me perguntou antes de passar a tesoura: “qual é o teu estilo?”. A amiga que estava comigo conta que eu parei, pensei, olhei para o espelho, olhei para ele um tanto sem graça e respondi: “meu estilo... meu estilo é meio assim... um pouco sem luxo, sabe?” A história foi compartilhada e, às vezes, esse “muito sem luxo” é aplicado indiscriminadamente a várias situações. Resumindo, arrumo minha mala no dia mesmo de viajar. Algumas vezes, apenas umas horinhas antes de sair de casa. Mas, por que falar disso? Sim, é claro, por que isso nem sempre sai barato. Já passei por muito embaraço. Fui a um evento onde a única mulher a usar calças ao invés de vestido de festa era eu. O pior, não tive como dar meia-volta, a anfitriã já havia me visto. Desconforto total. Hoje, em Zürich, onde mulheres e homens parecem estar desfilando em uma passarela constantemente, estou meio deslocada de novo. Cabelos lisos, louros e diligentemente arrumados, peles maquiadas, pescoços longos enrolados por cachemires coloridas, casacos saídos da capa da Vogue, ruas perfumadas pelas moças que passam. E eu aqui, muito sem luxo. Cheguei do jeito que vim, sem saber ainda com que roupa eu vou para me misturar a esse povão suíço, com seus cinco idiomas, com seus queijos furados, sua sofisticada variedade de chocolates e moeda própria. É, a Suíça não aderiu ao Euro, essa moedinha sem luxo. Parece que não fazer parte da Comunidade Européia e empenhar-se em manter seus Francos Suíços, seja a estratégia que proporciona aos suíços a desejada sensação de liberdade e independência.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

O amor de malas prontas


Quando o amor acaba, deixa um rastro. O amor não acaba e parte. Acaba e fica. O amor se fortalece e se alimenta de sua ausência. É uma espécie de corredor vazio. Não há nada lá, nem mobília, nem quadros, nem tapetes, nem luminárias. É só um longo e asfixiante breu que você tem que transpor. A cor desbotada das paredes, a falta de janelas, de ar, de luz natural, o assoalho sem brilho, o teto escuro.
Agora, quando o amor acaba, despede-se e vai embora sem lamentos ou desatino, é por que há muito tempo não estava mais lá. Se você não ficou atordoada, enraivecida, deprimida, agonizando sem estar morrendo, e se um corredor vazio é somente um corredor vazio, é por que quando partiu, o amor já estava alhures. Havia debandado antes, bem antes de fazer as malas.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Eutanásia assistida


Nos anos de 2003 e 2004, de repente, o tema da eutanásia foi parar nas telas dos cinemas. Assistimos a, pelo menos, três grandes filmes que abordaram, entre outras questões, o exercício da hierarquia do homem sobre a sua própria morte e as vicissitudes do ato em si.
Em “As Invasões Bárbaras” (Les Invasions Barbares, produção franco-canadense de Denys Arcand), o professor de filosofia, Rémy, que era jovem e sadio em “O Declínio do Império Americano”, envelheceu e adoeceu. Nessa história, a morte é convidada ilustre, pois vem para matar alguém que esteve vivo até seu último suspiro. Morreu da mesma maneira que escolheu viver, perto de seus amigos, antigas amantes, ex-mulher e do filho, com quem não tinha até então qualquer afinidade além do laço de sangue. Elegeu como cenário para acabar com sua vida a casa de campo onde costumava dividir com essas mesmas pessoas reflexões filosóficas, boas conversas e bons vinhos, enquanto protagonizava aventuras amorosas juvenis. Uma morte bem-vinda após uma vida bem vivida. Winnicott dissera uma vez que seu maior desejo é que estivesse bem vivo na hora de sua morte. Com o nosso professor de filosofia parece que se deu assim.
Já no espanhol “Mar Adentro”, do chileno Alejandro Amenábar, Javier Bardem se supera ao interpretar Ramón Sampedro, que não é um personagem fictício. Ramón foi um marinheiro que, aos vinte e seis anos, após mergulhar no raso, sofreu uma fratura que o deixou tetraplégico. Aqui é preciso encarnar aquele que existiu em carne e osso. Passados vinte e seis anos do acidente, Ramón, então com cinquenta e dois anos, não estava mais vivo na hora de sua morte. Desde que se tornou prisioneiro de uma cama, de onde só via o mundo através do quadrado de uma janela, Ramón não concebia o fenômeno de estar vivo como vida. O tempo que passava acordado, restrito as quatro paredes do quarto, era de uma angústia desesperadora. Somente em seus sonhos e devaneios conseguia extrair sensações que poderiam ser tomadas como vida. Como não era capaz de dar cabo de sua vida sem ajuda alheia, fez um apelo judicial para que a eutanásia lhe fosse concedida. Levou anos esperando que a justiça deferisse seu pedido, o que nunca aconteceu. Ao contrário, foi-lhe enviado a contragosto a visita de um cardeal para tentar dissuadi-lo da idéia. Por fim, contou com a ajuda de uma curiosa, a doce Rosa, que ao assistir a seu apelo pela televisão, resolveu visitá-lo imbuída do desejo de fazê-lo mudar a percepção que tinha sobre a sua vida.
Todo o grande nó dessa questão, é que Ramón - ao contrário de outros a quem a eutanásia é realizada sem maiores dilemas, pois já perderam há tempo o contato com o mundo externo - está lúcido, muito lúcido, demasiadamente lúcido. Inteligente, irônico, espirituoso, gentil, afetivo, sem contar com o olhar... Olhar profundo e angustiado, que te faz cúmplice num piscar de olhos. Convivendo com ele, as pessoas que o mantinham vivo encontravam sentido para suas próprias vidas. Na verdade, caso ele viesse a morrer, seus zelosos cuidadores perderiam muito mais do que seu paciente. No final, é a recém conhecida Rosa que o ajuda a realizar o ato de misericórdia que faria estancar sua agonia.
No norte-americano “Menina de Ouro” (Million Dollar Baby, superprodução de Clint Eastwood) acontece o mesmo. A diferença é que se trata de obra de ficção e a protagonista é bem mais jovem. Além disso, é um filme hollywoodiano, com seus efeitos e defeitos. A menina, Maggie Fitzgerald, protagonizada por Hilary Swank, é aprendiz de um treinador de boxe, Don, interpretado pelo próprio Clint. Após investimento intenso para aprender a lutar e convencer seu mestre de que era competente, Maggie torna-se uma das favoritas na luta. Aí chega o clímax do filme, uma luta valendo um milhão de dólares, que salvaria Maggie das garras de sua vil família. Só que ao invés de receber dólares, Maggie recebe um golpe certeiro de sua oponente e fica condenada a uma cama hospitalar, condição irreversível. Maggie, pede, implora, suplica a seu mestre Don, agora seu melhor amigo, que a ajude a morrer. Da mesma forma que Ramón, Maggie não suportava permanecer viva naquele estado.
O que há em comum nessas histórias? A eutanásia? Não. É a própria morte, clandestina ou não, pouco importa. É que a morte, ainda que seja desejada como um avatar da liberdade em seu estado mais puro, só é percebida como perda, e a isso já nascemos condenados.
Eutanásia, deriva do grego “euthanatos”, onde “eu” significa “bom” e “thanatos”, “morte”. Cometer a eutanásia é presentear o morrente com uma boa morte. Então, considerando a etimologia da palavra eutanásia, não faz sentido associá-la a um bálsamo, pois o instante da morte é sempre igual, tanto faz se vai se morrer de morte matada ou morrida. Seguindo esse fio condutor, a palavra que melhor se aplicaria para dar cabo a uma vida de dor e desespero, seria alguma que representasse “bom fim de vida”, aliviando e abreviando a vida de quem não deseja mais estar vivo.
O ato da morte deve ser análogo à suavidade e rapidez com que os cílios batem na pálpebra. Assim gostaria eu que fosse. Estivesse eu certa, não haveria mais sentido em se colocar em questão temas como a eutanásia ou suicídio.
O limiar entre o mal-estar de se estar vivo e o alívio de se estar morto, o que é um átimo, toma-nos de pavor e assombro. Quando falamos em sacrificar um animal para livrá-lo do sofrimento e deixá-lo morrer com dignidade, estamos somente justificando o nosso medo ancestral de lidar com a hora da morte. Não existe dignidade na morte, da mesma forma que não existe na vida. Acreditar que manter em rédea curta o domínio sobre a nossa morte paliará a nossa dor de existir... só mesmo nos filmes.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

O AMANTE - Dir. Francisco Medeiros (2010), do escritor e dramaturgo Harold Pinter - prêmio Nobel de Literatura em 2005


Sarah e Richard, interpretados magistralmente por Paula Burlamaqui e Daniel Alvim, dão vida a um clássico casal inglês que mora em uma casa no subúrbio de Londres nos anos 60. A história não poderia ser mais antiga e também mais atual. O casal para manter-se interessado um no outro, precisa ter um outro, ou outros, quaisquer outros que os façam esquecer temporariamente quem são e para quem são. Que todos os humanos desejam para além de um objeto exclusivo não é novidade. Ao contrário, só nos constituímos pela constante e impiedosa ameaça de que não somos o “tudo enfim” do outro. O terror de ser abandonado nos persegue desde os tempos mais remotos. Na verdade, desde quando, ainda bebês, percebemos que a mãe tem olhos para outros sítios além de nós. O mais insólito disso é que essa percepção trágica é, antes de tudo, estruturante. Para a psicanálise, é sobre essa premissa que se funda e se fundamenta toda a sua teoria. Porém, quando se trata da peça, o furo é mais embaixo. O conhecimento psicanalítico estofado com seus conceitos de castração, desejo, fixação, fetiche, não se prestam a dar nenhum conforto aos que escutam o delicado e denso duelo verbal entre Sarah e Richard, ao mesmo tempo em que, como bons "voyeurs", assistem à entrega das personagens às cenas de amor apaixonado. Do começo ao fim, temos a sensação de que ao deixarmos o teatro, retornaremos a nossa rotina da mesma forma que a deixamos. Doce ilusão. Tudo é muito perturbador: as litanias, os silêncios, as mordaças simbólicas, os gritos, as derrisões, os olhares, a crueza da luz e a lucidez das falas, sem falar na abstinência de sonhos – diferente, cabe ressaltar aqui, de fantasias – e o inefável. É, o inefável. É isso o que mais inquieta. Por mais que Sarah e Richard desnudem-se em confissões, resta algo de indizível, de inconfessável, que nem eles desconfiam do que se trata, mas que sabem que falta. A liberdade de poder expressar tudo o que se consegue não sustenta o delírio amoroso. Não há como passar incólume à dinâmica inconsciente que rege a relação de Sarah e Richard e que escapa a qualquer modo de apreensão. No entanto, tamanha é a beleza dos atores que, ingenuamente em vários momentos, pegamo-nos deslumbrados, capturados pela sensualidade, na medida certa, que orbita sobre o casal. Digo ingenuamente porque o texto é vertiginoso, desassossega, convoca. Mas seria apenas mais um texto que alude às delícias e ao deletério de um casamento, não fosse a sintonia visceral entre Daniel e Paula. Fico me perguntando como fazem para extrair de suas entranhas a presença daquelas personagens-entidades. Richard e Sarah somos todos nós, e o incômodo advém da pobreza de recursos que percebemos possuir para dar conta de uma relação amorosa, ao testemunhar, não sem comiseração, o despropósito que é devotar-se ao amor e buscar através dele, e só dele, uma gratificação que se contraponha ao pavor ancestral do desamparo existencial.
Bravo!

“No divã, como no amor, para mim o que conta é o que não posso dizer.” Jean-Claude Lavie, psicanalista

domingo, 7 de novembro de 2010

Para não dizer que não falei de mim


Se eu quiser falar de mim mesma, vou precisar recorrer ao que alguém já disse. Para me retratar uso e abuso das palavras, deslizo metonimicamente de um termo a outro, acentuo o que diz mais de mim, atenuo o que pouco diz, faço pontuações mirabolantes, até invento inflexões, modifico ou crio palavras, numa tentativa exaustiva de dizer quem sou eu. Diariamente me pego nessa preocupação. Quando estou dirigindo para a análise, busco eleger as falas que possam melhor descrever o que estou sentindo. É outra frustração. Quando chego lá, ou já esqueci as frases eleitas ou involuntariamente começo a falar de outra coisa. A sensação é sempre a mesma. O que disse não foi suficiente para me representar ou não disse, precisamente, o que acredito que poderia me desvelar. Assim, resta ler, escutar e ver livros, músicas e filmes que, sem consentimento prévio, tomo emprestado como metáforas de mim. Óbvio, é só mais uma tentativa. Imagino quantas pessoas se veem identificadas com a mesma música que eu e que também pensam que aquela canção poderia ter nascido de dentro de suas entranhas. E os filmes que trazem personagens que se parecem comigo ou assemelham-se às histórias que eu acho que vivi? Como diz Pessoa, são tantos que se enxergam da mesma forma, que não poderia haver tantos iguais. Ainda assim, mesmo que de maneira insuficiente ou dispersa, são as obras de arte que melhor se prestam à inesgotável tarefa de revelar quem eu sou. De acordo com Lacan, para dizer sobre nós mesmos é preciso que nos tomemos como objeto de observação e análise, o que é impossível, pois nesse caso deixaríamos de ser sujeitos. Que fazer então? Contentar-se com a miséria de signos que podem nos representar e, portanto, responder precariamente sobre o nosso desejo. Se nos sabemos só uma parte, quando muito uma metade, podemos apenas especular o objeto do nosso desejo, arriscando-se à inexorável pobreza de um desejo realizado.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

República de novo


Assisti na última semana ao filme “Como esquecer”, cuja protagonista é Ana Paula Arósio no papel de Júlia, uma professora de pós-graduação de Literatura Inglesa que, recém separada de um casamento que durou dez anos, depara-se com sua nova realidade. Não é simplesmente a derrota afetiva que a desespera. Como se não bastasse, é preciso lidar também com toda a parte prática e burocrática que uma separação inflige. Nos momentos em que cada toque do telefone ou da campainha desperta na catedrática uma excitação desenfreada e infantil, que mais beira um clichê novelesco que qualquer outra coisa, não é do retorno da amada que a perturbação do silêncio trata. Quando batem a sua porta, não é o amor de sua vida que Júlia vê logo ao abri-la. É a proprietária do apartamento requerendo o aluguel atrasado e lembrando-a que o contrato estava no nome daquela que a abandonou, inclusive o fiador também era um conhecido da moça. Num outro momento, o toque do telefone faz com que o corpo todo da professora sofra um impiedoso sobressalto. Mas, de novo, não é a ex-companheira arrependida, confessando que ainda a ama que está do outro lado da linha. Não é mesmo. É o gerente do banco dizendo que sua conta conjunta sofreu o mesmo que sua relação: foi separada à revelia. Com isso, mais golpes de pura realidade. Seu limite no cheque especial e no cartão de crédito foi cortado à metade e, o pior de tudo nessas horas, por mais ridículo que pareça, para Júlia o que mais dói é que outro vínculo se desfaz. Aqui nesse ponto, os títulos de mestre, doutora, pós-doutora não têm o poder de dar lenitivo ao pesar dos que foram abandonados, por não outra pessoa, senão por aquela mesma por quem um dia foram também amados. Como se tratava de uma relação homossexual, nem daquele dispositivo de vingança ancestral – pedir uma pensão alimentícia – nossa professora pode fazer uso. Sem dinheiro para manter o padrão de vida que levava na época do casamento, sem vontade de superar seu sofrimento, ao contrário, cultuando um desejo mórbido de se enterrar viva junto com a morte do amor, Júlia recebe a seguinte proposta de seu melhor amigo: voltar a morar em uma república. A princípio, ela rejeita categoricamente a idéia. Mas como a indiferença a toma por inteiro, Júlia muda-se com seu amigo e mais uma amiga do amigo para uma casa velha no subúrbio. República de novo naquela altura da vida? Pois é. Aquilo que se apresentava a Júlia muito mais como o triunfo do pior sobre o ruim, no final, foi o que a salvou do calvário que era ela mesma. O convívio com gente diferente dela, vivenciando igualmente desconsolados desencontros amorosos, mas com roupagens distintas, foi o corte que Júlia precisava. Ser desafiada por pessoas, sem quase nenhuma sutileza ou panacéia, a ver que o mundo não gira em torno do seu umbigo, foi a forma mais eficiente de tirar Júlia de seu estado melancólico. Descobrir-se capaz de aturar e acatar diferenças, de poder ainda dizer algo que conforte alguém, de aumentar, mesmo que milimetricamente, seu grau de tolerância, tudo isso a socorreu de um estado narcísico pernicioso, onde as frustrações amorosas funcionam somente como uma justificativa para que se possa operar nossos estágios mais regredidos e solipsistas de um ego infantil e petulante. Voltar a dividir a casa, os pertences e a vida, num momento tardio da vida, pode representar uma visita às esperanças juvenis dos sonhos de felicidade. O que não nos imuniza dos fantasmas do passado, pois como a própria Júlia questiona quando seu amigo a critica por viver com os fantasmas ao invés de encarar a realidade: “existe algo mais real que um fantasma?” Não, sabemos que não existe. Para além do bem e do mal, são eles os maestros da vida real.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

O inesperado

Um dia qualquer, idêntico a tantos outros, um mesmo destino, passos frouxos iguais aos de todo dia. Olha no espelho a cara que vê todas as manhãs há muitos anos, ajeita um pouquinho o cabelo com a mão e é só, e é muito. Antes de sair de casa, movimentos mecânicos e decisões automáticas, ligar isso, desligar aquilo, verificar se pegou tudo o que precisa para protagonizar mais um dia. Olha o tempo lá fora, não sabe se faz frio ou calor. A cor do dia não responde de quantos graus está a temperatura. Céu nublado de nuvens claras. Abre um pouquinho a janela e põe uma das mãos para fora. A técnica é ineficaz, continua sem saber, então arrisca, sai do jeito que está. Tudo indistinto até aqui. Nenhuma expectativa além de cumprir sua rotina daquela manhã. Poderia, de fato, ser um dia anônimo, sem data, horário, sítio. No entanto, um acontecimento único, unzinho, pequenininho, quimérico, efêmero, instantâneo, estancaria a mesmice daquele dia e instauraria algo novo, impiedosamente capaz de subverter suas certezas mais sedimentadas. Naquele dia, dia prometido a passar incólume, indiferente, ordinário dia de todos os dias, seu mundo, sem nenhuma premeditação ou anúncio, foi capturado por um olhar. Olhar daqueles que não se conhecem, sim se reconhecem. Olhar do músico vidrado nas notas de suas canções, dos poetas quando a tinta tinge o papel, das mães aos seus filhotes, do marujo ao mar, do menino à pandorga que voa, daqueles que esperam o momento do luzir do pirilampo. De um momento para o outro sua vida corre para os braços e abraços de um pedaço de terra conhecida, presa simplesmente pelo instante que dura um olhar. Coisas do acaso...

sábado, 2 de outubro de 2010

Casamento entre seres de espécies diferentes


Ela, jovem, linda, esbelta, cabelos loiros acinzentados. Ele, igualmente belo, esbelto, já não tão jovem, mas exibindo uma cabeleira negra digna de nota. Ela esperando ansiosa pelo encontro com aquele que dividirá o ninho de amor que vem construindo zelosamente dia após dia. Ele, nem em devaneios sonhava com isso, pois para ele a vida que levava estava boa demais. Mas não teve saída. Alguns amigos bem intencionados decidiram dar uma forcinha e aproximar o casal. Hoje em dia, está difícil conhecer parceiros contando apenas com os auspícios da natureza. Ela não se agüentava de tanta felicidade. Fazia alguns dias que o seu humor oscilava entre angústia e euforia, preparando-se para a chegada dele. Dava a impressão que estava mais bonita, mais viçosa e vistosa. Passava horas inquieta, indo de um lado para o outro, cantando nervosamente, simplesmente para disfarçar seu estado. Ele, como já disse, estava na dele, curtindo sua vida de solteiro. Sem grandes emoções, estava vivendo tranquilo e em paz com a sua natureza. Cantava para passar o tempo, alegrava-se com o irrisório fato de estar vivo. Distraía-se comendo comidinhas gostosas, bebendo água fresca, pois não era adepto às bebidas alcoólicas. Levava o dia a exibir-se para todas aquelas que estivessem disponíveis e, claro, que ele achasse interessante, mas sem comprometimento maior. Até o dia de hoje...
O encontro se deu. Ela, histérica, chegou a dar uns gritinhos de excitação quando o viu. Ele, meio apavorado, mas tentando disfarçar, cantava agora de nervoso. Esses sentimentos incoercíveis prevaleceram no primeiro momento. Um tentando fazer a corte ao outro, num misto de estranheza e constrangimento. Porém, em não muito tempo os dois já haviam mudado seus comportamentos: ambos se calaram, quase nem se olhavam mais. Não existia mais a excitação de outrora. Os movimentos frenéticos de lá prá cá, assovios e cantos, de alegria ou nervoso, desvaneceram-se. O encanto se foi, na mesma velocidade de um supersônico. Coisa natural da vida. Mas não pensem que isto se deu por que ela é uma canária belga e ele um pintassilgo. Não, não é isso. Todo esse imbróglio é indiscutivelmente por que ela é uma fêmea e ele um macho.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Mentes, eu minto, tu mentes...


As patologias psíquicas, sem sombra de dúvida, têm sofrido algumas transformações nas suas formas de manifestação. Porém, se observarmos bem, veremos que o repertório de sinais e sintomas que caracterizam as desordens e transtornos mentais não apresentam diferenças assim tão significativas a ponto de se pensar em outros tipos de tratamento ou outra nomeação. A exceção disso foi o Transtorno Bipolar, que antigamente era chamado de Psicose Maníaco-depressiva, que, diga-se de passagem, era uma nomenclatura mais fidedigna do que Transtorno Bipolar. No entanto, pelo preconceito que há em relação às psicoses, por injustamente estar erroneamente associada à psicopatia, decidiu-se retirar os dois palavrões da doença: psicose e maníaco. Nas psicoses, então, estas alterações de sintomas, são quase nulas, o que mudou foi o alcance das medicações na tentativa de domar os delírios. As depressões continuam do mesmo jeito, algumas nuances e sutilezas que dizem mais respeito ao singular do sujeito, do que ao fato de se tratar do tipo “a” ou “b” de depressão. As crises de ansiedade foram subdivididas em novas categorias e ganharam alguns nomes, como a tão popular Síndrome do Pânico. As fobias estão hoje catalogadas numa espécie de menu recreativo, tem para todas as idades, gostos e gozos. Em suma, normalmente o sofredor dessas enfermidades recebe algum diagnóstico que nomeie o seu padecimento e lhe é prescrito tratamento - via medicamentosa ou via prosa, ou ainda ambos.
Minha questão é que estas patologias já existem, já são tratadas há muito tempo e transtornam mais os seus proprietários do que aqueles que convivem com os transtornados. E, sobre esses, sempre vai haver alguém que se sinta outorgado a tomar conta do doente e fazê-lo ficar “bonzinho”.
Só que há patologias tão antigas quanto essas, mas que ainda não foram privilegiadas pelas ciências farmacológicas ou pela psicanálise. O que dizer dos mitômanos contumazes... há remédio para controlar essa compulsão? E dos incoerentes crônicos, que dizem uma coisa e fazem outra completamente oposta? Tem algum “sal” ou um santo “benzo” para interromper esse comportamento? E para aqueles que defendem a supremacia das suas ações, mas acovardam-se na hora de encarar as repercussões de seus atos? Por que essas doenças da mente não constam no DSM ou no CID10? Imagine só o diálogo entre psiquiatra e paciente:
Psiquiatra: - Pelo que está me contando, acho que o senhor sofre de incoerência crônica, vou checar...
Paciente: - Eu?
DSM - Critérios diagnósticos para Transtorno da Incoerência Crônica - TIC
1) Acreditar e reconhecer a importância dos tratamentos para a dor da alma, para os outros;
2) Xingar quem para em fila dupla e adorar parar nessa mesma fila;
3) Agredir subalternos e odiar pessoas arrogantes e prepotentes;
4) Transar com uma garota de 18 anos e não conceber a idéia de que sua filha de 20 faça sexo;
5) Achar o salário mínimo uma piada e pagar sua empregada com ele;
6) Entrar em confrontos políticos e justificar seu voto;
7) Pedir descontos ao comprar o trabalho de um artesão e pagar uma fortuna em uma roupa de grife, sem pedir nenhum desconto;
8) Elogiar a educação das pessoas que vivem no 1º mundo e fazer todo o tipo de grosseria no seu mundo.
Psiquiatra: - ...muito bem, o seu diagnóstico é TIC mesmo, vou prescrever um medicamento que está dando bons resultados em casos como o seu, e acredito que, principalmente, as outras pessoas serão beneficiadas com a sua melhora.
Será que algum dia, esses males infinitamente mais sérios e nocivos para quem convive com os que padecem deles ganharão um olhar?
Acho que estou precisando de um remedinho...

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

O Refúgio - Dir. François Ozon (França, 2009)


Título original homólogo ao adaptado - “Le Refuge”. É um filme superior, assim como “Cinco vezes amor”, mas nesse Ozon foi mais longe. Conseguiu reunir em torno do mesmo tema: a dor do vazio de existir versus hedonismo em sua plenitude - por tempo limitado, é claro -; mentes enfermas; a fragilidade e os descaminhos dos vínculos afetivos; a falta de signos de amor que possam fazer barreira ao terreno pantanoso que rege o desejo da maternidade e da paternidade.
Filme maduro e corajoso na abordagem de temas humanos, “demasiadamente humanos”. Previsível onde não há alternativa melhor e imprevisível naquilo que tange o fascínio apaixonado do diretor para compor e contar esse drama. Ozon tenta nada deixar passar, tanto que o filme parece mais longo do que na verdade é. Os diálogos são prosaicos, frios, sem afetação teatral, mas nenhum seria dispensável - às vezes cálidos e ternos, noutras sofridos e tensos. A fotografia é bela - o filme se passa em um lugar bucólico entre o verde do mato e o colorido das flores e a imensidão do mar.
Ela é linda; densa, sombria, opaca e sóbria, apesar de viciada em heroína. Ele é ainda mais lindo; doce, leve, versátil, mas complexo.
O filme é uma experiência feliz. Não dê ouvidos à pobreza da sinopse. Quem gosta de simplicidade e concisão, verá no filme o que foi dito até aqui. Quem prefere ir sempre um pouquinho além, mesmo que isso custe algumas rugas na testa, o filme trata de forma crua, nua e desiludida de redenção, naquilo que pode representar de bom e de ruim.

sábado, 18 de setembro de 2010

Solidão


Solidão.
Tema inesgotável. Condição de quem se sabe humano. No dicionário, a definição é pobre, simplista, concreta, unívoca – bem solitária. É na filosofia e nas artes que o termo ganha enlevo. Nessa seara, a solidão recebe a dose de abstração e subjetivação que merece. Basta pensarmos a diferença abissal que existe entre solidão para um bebê no berço e para um velho num asilo. Solidão entre ficar em casa, quieto, concentrado, lendo ou escrevendo – atividades em que a solidão é extremamente bem-vinda - e estar acamado num hospital. Nem Einstein daria conta de tanta relatividade... Por essa razão, pensadores e artistas conseguem apenas tangenciar o seu significado, sem nunca, nem de perto, abranger o seu pleno sentido. Existe um tipo de solidão, recurso sem igual para poetas e compositores, que está, inequivocamente, vinculada ao amor e aos seus amantes. É matéria-prima da melhor qualidade para promover inspiração. Ao contrário do que ingenuamente pensamos, esta é a menos nociva. É uma solidão preenchida de recordações, de figuras, palavras, músicas, filmes e, além disso, dá muito o que falar. Faz a festa de psicólogos e psiquiatras. O que parece ser um grande paradoxo, é que na verdade, este tipo específico de solidão funciona justamente como uma barreira contra a solidão. A pessoa está sempre acompanhada, seja pelos seus próprios pensamentos, sonhos, lágrimas, questionamentos... essa é suportável. Tão suportável, que é motivo de criação. Não faltam canções para saudar este sublime estado: mesmo o amor que não compensa é melhor que a solidão; canta Vinicius. Fundamental é mesmo o amor, é impossível ser feliz sozinho; diz seu parceirinho João Gilberto. Outros intitularam suas canções com ela, como Alceu Valença em Solidão – a solidão é fera, a solidão devora. Canta sua solidão igualmente em Na primeira manhã – Alceu, inspirado pela solidão de sua primeira noite logo após ser deixado pela mulher compôs esse lamento de abandono. Neruda poetiza: saudade é solidão acompanhada, é quando o amor ainda não foi embora, mas o amado já...
Porém, há alguns artistas e pensadores, mais sóbrios e solitários, que falam de outro tipo de solidão. A solidão que dói na alma e corrói os ossos. Aquele tipo, insubordinado e atroz, cujo caráter inominável, irrepresentável e incoercível mal cabe dentro da gente. Incomoda, faz barulho, desespera, aflige, alucina. Para esse tipo cruel de solidão, tivemos autores de inestimável lucidez, sabedoria e uma boa porção de tristeza e solitude. Raquel de Queiroz, com aquela maturidade de quem já nasceu velha, diz: a gente nasce e morre só. E talvez, por isso mesmo, que se precise tanto viver acompanhado. Clarice Lispector, com seu estado de alma sempre melancólico, conclui: e ninguém é eu, e ninguém é você. Esta é a verdadeira solidão. Mario Quintana, bem pessimista aqui, escreve: viajar é mudar o cenário da solidão.
No entanto, descobri algo interessante escrevendo esse texto. Os mais niilistas dos filósofos, são otimistas quanto à solidão. Schopenhauer afirma: solidão é a sorte de todos os espíritos excepcionais. Nietzsche: minha solidão não tem nada a ver com a presença ou ausência de pessoas... detesto quem me rouba a solidão, sem em troca me oferecer verdadeiramente companhia.
Dentre todas essas percepções, fico com a de Clarice.
Muito a refletir... Solidão? Aprecie com moderação.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Tempo, tempo, tempo, tempo


Ária, nome do novo CD de Djavan, é um dos mais belos e inspirados trabalhos do cantor e compositor. Com uma seleção de clássicos da MPB, Djavan, com aquele seu carisma e doçura tão Djavan, passeia por canções de Cartola, Edu e Chico, Vinicius e Tom, Beto Guedes, Gilberto Gil. Mas é na obra-prima de Caetano, a iluminada “Oração ao Tempo”, que Djavan comove. A música, na voz de Djavan é análoga à pureza de um limão e à solidão do espinho. Linda!
Parece pouco? Até poderia, só que com a sua inconfundível voz serena e delicada, ainda visita ritmos variados, vai de bolero, samba, blues... Tem até Luiz Gonzaga. Ele canta em português, inglês, espanhol e djavanês. Vale a pena ouvir. Se você gosta de Djavan, ouça Ária! Se não gosta, ainda há tempo, tempo, tempo, tempo.
O disco é uma bálsamo para os sentidos. Alivia e acalenta a alma.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Amizade X romance


Há muito tempo, bem antes de alguns pensadores contemporâneos profetizarem sobre o naufrágio das relações familiares e o fortalecimento das relações de amizade, já acreditava intuitivamente nessa proposição.
Simultâneo a isso, também deixei de acreditar nas relações alicerçadas nos pilares do amor romântico. Prefiro viver de desilusões. As novelas e filmes que retratam o discurso de pombinhos apaixonados, recheados de diálogos melados, não ganham minha audiência. Na verdade, acho as cenas apenas engraçadas.
Sem falar nas vezes em que escuto relatos de sujeitos que se dizem apaixonados. O repertório é pobre e nada original. Alguns, orgulhosamente espalham aos quatro ventos, que acabaram de conhecer alguém e, numa fração de horas, a conversa foi tão fácil e familiar que o casal virou cúmplice em inúmeras questões. Às vezes, o fenômeno se dá apenas no relâmpago de um olhar. Esses alienados investidores causam-me senão pena. Mas, não pensem que sou uma destruidora de ilusões. Ouço tudo atentamente e apenas faço, eventualmente, algumas perguntas simples.
Outro dia, alguém me disse que o seu parceiro era tão especial e combinava tanto com ela, que era capaz de ler seus pensamentos. Cheguei a me arrepiar. Quem, em sã consciência, acha bom que outra pessoa, mesmo que seja na África, tenha o topete de ler seus pensamentos? Nem a Madre Tereza de Calcutá iria gostar disso. Aliás, se alguém tivesse essa habilidade, provavelmente ela não seria mais a Madre Tereza de Calcutá.
Lacan, na maioria das vezes, mal interpretado, afirma: “não há relação sexual”. O que ele quer dizer com esta afirmação? Que o inconsciente não reconhece a diferença sexual via anatomia, os órgãos genitais não podem determinar quem é homem e quem é mulher. A diferenciação sexual se dá pelo lugar que cada um ocupa no inconsciente. Assim, não há “o” encontro, o encaixe que fará de dois sujeitos um. Lacan cansa de repetir: não é possível de dois fazer um. Essa constatação é triste, refuta os nossos sonhos juvenis de completude. Esqueça aquele papo da metade da laranja, ou da cara metade, ou ainda, da alma gêmea. Tudo engodo, mentira, logro. O amor romântico foi criado para tamponar esse buraco que é a inexistência de relação sexual. Assim, a reprodução está garantida. Sem o auto-engano do amor, a raça humana estaria em processo de extinção.
Com ou sem teoria, nada disso é novidade. Basta alguma lucidez e a desconfiança desconcertante dos amores à primeira vista, dos romances impossíveis, das ilusões baratas, para você desejar investir nos vínculos de amizade mais do que nos velhos clichês dos romances com prazo de validade expirado ainda antes de serem consumidos e consumados.
Não quero dizer com isso, que não é possível estabelecer boas relações familiares ou conjugais. Longe disso. É possível que se tenha amigos que sejam também seus irmãos. Que possa haver trocas fecundas e encontros saudáveis entre os consangüíneos. Mas, isso não é uma prerrogativa e, muito menos, uma regra.
Também acredito que duas pessoas possam viver como um casal por muitos anos e sentirem-se bem na relação, desde que o pilar da comunhão seja a amizade e não o tal do amor romântico.
O sujeito contemporâneo, esse que somos nós agora, está acabando, fechando um ciclo, bem como a idéia das famílias nucleares. Há quem defenda as relações de amizade como as únicas consistentes e passíveis de serem bem sucedidas, uma vez que são estabelecidas a partir de uma verdade soberana: amigo é plural. Nas amizades não há a premissa da exclusividade, como nos romances. Pode-se viver com a diversidade dos amigos. Há aqueles que gostam de partilhar com você um papo sério, outros que gostam de sair com você, outros que nem têm muito a ver, mas são agradáveis e te fazem rir, ainda há outros que são exatamente o que você não é, que veem o que você jamais veria, e isso é muito instigante. Há os infantis, os chatos, os folgados, os mimados. Viva a singularidade!
De fato, é bem provável que as novas famílias não sejam compostas, exclusivamente, por pessoas com laços de sangue. Eu torço por isso.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Foucault e liberdade


Na percepção do filósofo francês, liberdade está para autonomia, assim como escravidão está para dependência. Foucault, o mais contemporâneo dos filósofos, defende a ideia de que para sermos livres é preciso que saibamos cuidar de nós mesmos. O que vem a ser cuidar de si? A exemplo dos estóicos, cuidar de si é cultivar-se, é atender às necessidades do corpo, da mente e do espírito, sem incumbir o outro desse trabalho. Desde o nosso nascimento sabemos que é precisamente o outro quem nos possibilita a sobrevivência e o desenvolvimento. Até aqui tudo bem. Depois, esses cuidados são transpostos para as instituições, escolas, exércitos, igrejas, presídios, hospitais, que passam a ser responsáveis pela nossa manutenção no mundo. Vivemos sob a égide do paternalismo, exigimos cada vez mais que alguém cuide de nós. Esse modo de existir, parece à primeira vista, cômodo, prático e fácil. É assim que nos tornamos presos e presas. As psicoterapias cumprem bem esse papel ao tentar tomar as rédeas da vida do cliente, oferecendo-lhe colo e apoio. É simples culpar pai e mãe, chefes, governantes por tudo aquilo que nos contraria e nos frustra. Não gostamos de ser implicados em nossas escolhas e às repercussões que delas advêm. Concordo que é pesado e árduo tomar para si a responsabilidade sobre o nosso bem ou mal-estar. Foucault complementa dizendo que o ato de cuidar de si é o que nos habilitará a cuidar de um outro, na verdade, a ensinar ao outro como se cuidar. Assim deveria ser o sentido e a intenção de educar. Os métodos educacionais tradicionais fazem exatamente o oposto, bem como outras formas de inserção na sociedade contemporânea. Nossos jovens aprendem desde cedo a esperar do outro respostas para suas demandas e a culpá-lo pela falta de conquistas materiais e intelectuais. Não se importar com os porquês do que acontece a nossa volta é a forma mais cabal de se alienar dos cuidados consigo mesmo. As relações afetivas são o alvo mais certeiro desse tipo de isenção. A culpa é sempre do outro. Difícil sustentar a lâmina que fará o corte no vício da dependência. A decisão pela emancipação é solitária, sacrificada e ruidosa, mas acomodar-se no balanço instável do colinho sedutoramente macio e morno do outro levará, indubitavelmente, ao pior.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Museu da língua portuguesa

O poeta português e seus heterônimos. Seus heterônimos e seus pensamentos em verso e prosa. Era tanta inteligência, sensibilidade e beleza que Pessoa não cabia em uma só pessoa. Com uma escandalosa lucidez, ao mesmo tempo em que desfaz ilusões, constrói sonhos, sonhos capazes de fazer frente às mesmas desilusões. O homem no plural transcende tempo, gente e seus contextos. Na parede negra do museu um pedaço de “Ideias Políticas”, reflexão transcendental, que perturba e oblitera os pretensos pequenos saberes.

“Uma criatura de nervos modernos,
de inteligência sem cortinas,
de sensibilidade acordada,
tem a obrigação cerebral
de mudar de opinião e de certeza
várias vezes no mesmo dia.”

terça-feira, 31 de agosto de 2010

A pedido: casa, casamento e descasamento


A expectativa de que um encontro amoroso seja o início, o meio e o fim – finalidade -das nossas existências, faz com que o término de um relacionamento deixe marcas indeléveis. Não importa o quão satisfeitos estejamos em uma relação, qualquer separação vai atualizar a separação original, fundamental e fundante que experimentamos um dia - daí vem o termo “angústia de separação”. Perceber que a mãe existe além de nós e deseja para além de nós é uma inexorável tragédia. Assim dá para entender por que o afastamento do outro é desproporcional ao sofrimento vivido numa separação, voluntária ou involuntária. Na verdade, o luto é sempre outro e, quando o elaboramos, também é sobre uma perda outra que não esta que acreditamos ser. A sensação é a de ter perdido pai e mãe de uma só vez, quando ainda se é prematuro. É preciso encarar o vazio e o silêncio da casa que foi um dia o palco de promessas onipotentes de completude e suficiência. Vemo-nos regredidos como bebezinhos dependentes dos cuidados do outro para sobreviver. Sentimos que aquele que saiu levou consigo todos os objetos bons – está feliz e credenciado - e que nós ficamos com todos os ruins – estamos tristes e duvidosos. O desconsolo vai e vem. Tentamos, em vão, catalogar pensamentos e sentimentos, numa eterna retroação, mas a veleidade e fluidez com que se apresentam deixa-nos somente aturdidos. Estamos sujeitos a uma bipolaridade reativa. Há momentos de maiores certezas e menos dúvidas, e outros onde a culpa e o arrependimento são os moderadores de tudo. À decisão de se separar estará irremediavelmente alienada a ambivalência entre o conhecido e o desconhecido. Inconstantes, imprevisíveis, instáveis, indefiníveis, incertos, incoerentes... Poderia utilizar mais uns dez adjetivos “ins” para descrever as ideias arbitrárias que culminam num “loop” de emoções daqueles que optam por não mais dividir a mesma casa. Mas, a complexidade da questão é que nem um desses adjetivos ou mesmo todos eles juntos dariam conta de nomear essa “coisa” que dá dentro da gente após uma separação. Como bem disse Guimarães Rosa: “muita coisa importante falta nome”.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Aeroportos


Descobri que aeroportos exercem um certo fascínio sobre mim. Quando voava, não via a hora de mudar de profissão, mas devo admitir que os períodos em que passava dentro dos aeroportos me agradavam. Algumas vezes, tinha que ficar de reserva no aeroporto, caso precisasse assumir o voo de algum colega que gostava menos de voar do que eu. Quando não acionada para voar, a profissão não me incomodava. Naquela época, todos os voos, com exceção da ponte-aérea, saíam de Cumbica. Aproveitava para ler, tomar café, estudar e observar. Havia uma só livraria, e era lá que passava algumas horas da minha reserva. Já sabia de cor os títulos que oferecia, cheguei a ler, aos poucos, um livro do Veríssimo inteiro, em pé, dentro da loja.
Hoje, não mais comissária de bordo, ainda os aeroportos me alegram. Gosto do cheiro de perfume que exala das lojas duty free, das pernas das pessoas se movimentando para lá e para cá, das bocas se mexendo freneticamente, da atmosfera que se cria em torno das viagens. Fico atenta aos olhos fixados nos displays de informações, aos ouvidos que tentam ter vida própria, para poder escutar os anúncios da mocinha de voz estridente em meio ao burburinho de outras vozes dissonantes. Às vezes, há longas esperas. Gente que faz de conta que lê, que ouve música, que come, que trabalha, que dorme; todas iniciativas vãs para que se distancie o tempo entre o agora e o depois. Vive-se um período de considerável ansiedade até que as rodas do trem de pouso se despreguem da terra e, mais ainda, que toquem a terra de novo.
Acho que entendo o meu fascínio por aeroportos, que é o mesmo de tantos outros que se submetem a passar por tudo isso como se estivessem sob o signo de uma necessidade. A felicidade, no imaginário dos sujeitos neuróticos, está sempre alhures.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Morte e morrer

Quando acreditava que meus ídolos já haviam tido os seus apogeus criativos, e que de agora em diante o que viesse era lucro, Gilberto Gil me surpreendeu com a canção de sua autoria “Não tenho medo da morte".
De forma poética, mas nada pueril, Gil vai desfazer o pretenso parentesco que existe entre a morte e o morrer. A morte está sempre à espreita dos seres de reprodução sexuada. Só que em alguns momentos da vida, ela se presentifica com mais voracidade e, para quem duvida mais do que acredita, é sempre um tempo de reflexão e solidão. Gil, agora um pré-septuagenário, retrata, quase sem abstrações, a angústia que dele se apropria quando vislumbra o ato de morrer, ao mesmo tempo em que o estado morte lhe causa senão indiferença. Sei que a discriminação entre a morte e o morrer não é uma sacada original ou genial. O inédito da coisa é musicar o tema e fazê-lo bem; e belo.

“Não tenho medo da morte

Não tenho medo da morte
Mas sim medo de morrer
Qual seria a diferença
Você há de perguntar
É que a morte já é depois
Que eu deixar de respirar
Morrer ainda é aqui
Na vida, no sol, no ar
Ainda pode haver dor, hein
Ou vontade de mijar
A morte já é depois
Já não haverá ninguém
Como eu aqui agora
Pensando sobre o além
Já não haverá o além
O além já será então
Não terei pé nem cabeça
Nem fígado, nem pulmão
Como poderei ter medo, hein
Se não terei coração?
Não tenho medo da morte
Mas medo de morrer sim
A morte é depois de mim
Mas quem vai morrer sou eu
Derradeiro ato meu
E eu terei de estar presente
Assim como um presidente
Dando posse ao sucessor
Terei que morrer vivendo, hein
Sabendo que já me vou
Aí nesse instante então
Sofrerei quem sabe um choque
Um piripaque, um baque
Um calafrio ou um toque
Coisas naturais da vida
Como comer, caminhar
Morrer de morte matada
Morrer de morte morrida
Quem sabe eu sinta saudade, hein
Como em qualquer despedida.”

Gilberto Gil em Banda Larga Cordel, lançamento de 2009

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Silêncio

Juan Nasio, psicanalista de orientação lacaniana, debruçou-se sobre o tema em seu livro “O Silêncio na Psicanálise”. Nasio consagra um lugar privilegiado ao silêncio, estado cada vez mais raro no mundo contemporâneo. O silêncio não se faz somente na inexistência de ruídos. Segundo o Houaiss, silêncio é a privação, voluntária ou não, de falar, de publicar, de escrever, de pronunciar qualquer palavra ou som, de manifestar os próprios pensamentos. Difícil alcançar este estado, não é? Todos têm acesso a recursos que te incitam a nunca silenciar. O silêncio virou o bem mais precioso que alguém pode almejar, mesmo que não tenha consciência disso. O grande embaraço das nossas questões resume-se, no fim das contas, à impossibilidade de silenciar. Na era vitoriana, quando do primado da associação-livre de Freud, desejava-se o oposto. O nome da técnica de Freud era “talking cure”, isto é, a cura pela fala, pela conversa, por tudo aquilo que a língua pudesse pronunciar. Acreditava-se que aos pensamentos deveria ser dado um destino, um endereçamento. Será que ainda podemos falar desse tipo de repressão nos dias de hoje? Hoje, fala-se pelos cotovelos, fala-se sozinho, fala-se dormindo. O grande filão do mercado são os diversos aparelhos que nos permitem falar. As propagandas são claras: “fale” até mil minutos por tantos reais. A demanda é a de falar, não importa o quê ou para quê; por computadores, celulares, e outros tantos “gadgets” que não conheço.
O problema dos nossos dias, ao contrário daqueles do início do século passado, não estaria, então, na incapacidade de calar? No mundo pós-moderno, na efervescência das falas vazias pode estar alojada a nossa ruína... Algo, como propõe Nasio, a se pensar.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Gosto do Pessoa na pessoa

Caetano, em sua iluminada canção "Língua" faz uma declaração de amor à língua portuguesa. Defende em seus versos sua concepção de Pátria: "minha Pátria é minha língua". Demonstra a riqueza da língua portuguesa através dos poetas que se dedicaram à captura das palavras perfeitas para compor suas obras, como Camões, Noel, Pessoa, Chico.
Aí vai um pedacinho da letra de Caetano, que é enorme. Mas, como não é difícil perceber, só esta estrofe já dá muito o que pensar.
"Língua
Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões
Gosto de ser e de estar
E quero me dedicar a criar confusões de prosódia
E uma profusão de paródias
Que encurtem dores
E furtem cores como camaleões
Gosto do Pessoa na pessoa
Da rosa no Rosa
E sei que a poesia está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior?..."

Para quem, assim como Caetano, gosta do Pessoa na pessoa, aqui vai a dica: a partir de amanhã, 24/08, no Museu da Língua Portuguesa, o homenageado será o poeta português na pluralidade de seus heterônimos. Melhor impossível!

Antes que o mundo acabe (2009)

Este é o título do filme da diretora gaúcha Ana Luiza Azevedo, uma produção da Casa de Cinema de Porto Alegre. A película ganhou o Prêmio Itamaraty na Mostra de São Paulo na categoria melhor filme brasileiro. Prêmio merecido. O tema é tratado com uma delicadeza feminina, dá para perceber de longe que teve o toque de uma mulher ali. Os jovens atores são brilhantes e promissores. É um filme jovem que trata de temas da adolescência na contemporaneidade. Há alguns diálogos que retratam essa mudança dos tempos. O melhor deles é quando o guri de quinze anos toma um porre daqueles e passa mal. O padrasto não chega a repreendê-lo, mas demonstra sua decepção com o estado de embriaguez do filho. O adolescente, então, pergunta ao homem adulto: "Você nunca tomou um porre?" Ao que o homem responde com categoria: "Na tua idade não." E o guri com aquela rapidez dialética coerente com a sua época ataca: "Por acaso, com a minha idade você recebia e-mails?"
Nem é preciso narrar a expressão do adulto, o homem sai de cena mudo e ensimesmado. Nós, na platéia, também.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Surpresa no cinema

Domingo, quatro e meia da tarde, ligo para minha parceira de cinema dizendo que estou saindo de casa para pegá-la. Avisada desde o dia anterior, ela sabia que haveria uma única apresentação do filme que eu esperava ansiosamente que entrasse em circuito às seis horas. O filme? “Só dez por cento é mentira”, documentário sobre Manoel de Barros - poeta mato-grossense.
Sei que esse horário é um tanto inusitado, pois costumamos pegar as últimas sessões de cinema. Claro que minha amiga não estava pronta. Insistiu para que assistíssemos a um outro filme, reclamou, repetiu que eu era chata, etc. Eu bati o pé, e bem reacionariazinha, disse: eu te avisei ontem sobre o horário, não tem desculpa. Fui.
Ficamos de mal por uma semana. Na verdade, só até a próxima sessão de cinema. Mas o fato que faz valer contar essa história não foi esse. Acontece que ao entrar na sala do cinema ainda toda iluminada, passo por alguém mais adiantado que eu, que sentado sozinho numa poltrona do corredor, devorava o livro do Manoel de Barros; uma edição especial que estava esgotada nas livrarias. Curiosa, de soslaio, volto meu olhar para aquele livro, meio indignada por estar na posse de outras mãos que não as minhas, e reconheço o proprietário das mãos que seguravam aquele objeto precioso: um amigo de alma que não via há longa data. Chamei seu nome. Foi surpresa em dose dupla. Ficamos os dois numa felicidade só. E ainda por cima, ambos compartilhando da mesma paixão pelo querido poeta de cabeleira branca.
Saímos do cinema como se tivéssemos tirado a sorte grande. Fomos tomar um café, contar um pouco do que aconteceu durante os quase seis anos em que não nos víramos e marcar os próximos encontros.
Isso foi há uns seis meses. Desde lá nos encontramos, pelo menos uma vez por semana. Como um obsessivo consegue infalivelmente enlaçar o outro nas suas idéias obsessivas, ele aderiu ao meu cinema “sempre aos domingos”. A dupla virou trio. E o melhor de tudo isso, quando o assunto é cinema, meu amigo consegue ser mais pontual do que eu. Tudo de bom!

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Chão de giz

Meus ouvidos dedicam-se mais às letras das composições do que às suas melodias. Já há alguns anos, o Juca*, em botecos com música ao vivo, delira quando o cantor dedilha as primeiras notas de "Chão de giz". Aprendi a delirar com ele. Tenho "Chão de giz" em umas quatro ou cinco versões, sem contar o LP com a carinha do Zé novinho, deste eu já tinha um e comprei outro, vai que um estrague. Como ia dizendo, a mesma música toca aqui em casa com o Zé Ramalho sozinho, com a parenta dele, com os dois juntos, com Alceu Valença, com Geraldo Azevedo; tem para todos os gostos.
Interpretações não faltam. O que falta para mim é decifrar o enigma que é essa letra. Alguém tem idéia do que possa ser “espalho coisas sobre um chão de giz”, ou “eu vou te jogar num pano de guardar confetes”, ou ainda, “disparo balas de canhão, é inútil pois existe um grão-vizir”?
Já especulei o “giz” análogo à cocaína, ou que toda a criação tivesse se originado numa bem sucedida viagem de ácido. Vou ficar sem saber. Uma vez, quando tive a oportunidade de perguntar - Zé esteve no mesmo avião em que eu era tripulante - não rolou, pois ele estava aterrorizado de medo de voar e um temporal daqueles de filmes de cemitério, com raios, trovões e ventos, provocava uma forte turbulência, impedindo qualquer aproximação.
Se alguém souber do que se trata ou tiver sugestões, por favor, comente!
*namorado da Dani Sabino

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Frio, vinho e um poeta maldito

"Embriaga-te

Deves andar sempre bêbado.
Tudo se resume nisto: é a única solução.
Para não sentires o tremendo fardo do Tempo que te despedaça os ombros e te verga para a terra, deves embriagar-te sem cessar.
Mas com quê?
Com vinho, com poesia ou com a virtude, a teu gosto.
Mas embriaga-te.
E se alguma vez, nos degraus de um palácio, sobre as verdes ervas duma vala, na solidão morna do teu quarto, tu acordares com a embriaguez já atenuada ou desaparecida, pergunta ao vento, à onda, à estrela, à ave, ao relógio, a tudo o que se passou, a tudo o que gemeu, a tudo o que gira, a tudo o que canta, a tudo o que fala, pergunta-lhes que horas são:
"São horas de te embriagares!"
Para não seres como os escravos martirizados do Tempo, embriaga-te, embriaga-te sem cessar!
Com vinho, com poesia, ou com a virtude, a teu gosto."


Charles Baudelaire (1821-1867) em "Poesia mais-que-perfeita"

domingo, 15 de agosto de 2010

Reflexões de um liquidificador - Dir. André Klotzel - Brasil (2010)

Durante anos, ouvi Cazuza em sua delicada "Codinome Beija-flor" e tinha a maior curiosidade em saber o que ele queria dizer com: "...dizer segredos de liquidificador...". Sempre profético, desde "Brasil", Cazuza pressagiava o rumo da história brasileira da década de 90, no meu entender. Lembro que esta era a trilha sonora de abertura da novela "Vale Tudo", folhetim que comungou em cima com a letra do poeta. Hoje, assisti ao "Reflexões de um liquidificador", com direito à apresentação do filme pelo próprio diretor, André Klotzel em carne e osso à frente da tela, figura hilária e irreverente. Desejei perguntar a André se a escolha do nome de sua película tinha algo a ver com o "codinome" de Cazuza, minha timidez não me deixou, ainda bem. Presente de domingo, o talentoso Selton Mello, desta vez, surpreendentemente no papel de liquidificador. Segredos, reflexões, seja lá o que for de liquidificador... é muita abstração!

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Ah... Clarice!


"É. Eu me acostumo mas não me amanso. Por Deus! Eu me dou melhor com os bichos do que com gente. Quando vejo o meu cavalo livre e solto no prado - tenho vontade de encostar meu rosto no seu vigoroso pescoço e contar-lhe minha vida. E quando acaricio a cabeça de meu cão - sei que ele não exige que eu faça sentido ou me explique."

Clarice Lispector em "A Hora da Estrela"

Voltar para casa


Acho que viajar, no fundo, é sempre um desejo de des - identificaçao. Viajar é esquecer-se de si, é abandonar-se. Quando viajo não quero me levar junto. Anseio por uma metamorfose. Busco no anonimato uma entrega, uma oportunidade única de ter minha identidade dada somente pelo número do passaporte. Observo os rostos estranhos que vejo passando nas ruas desconhecidas. Adoro me perder em meio às variadas construções, nos desvios e desvãos das palavras pronunciadas em línguas maternas que não a minha. O “unheimlich” - texto de Freud, que quer dizer “estranhamente familiar" - que mora dentro de mim fica ávido para se praticar. Um distanciamento de hábitos e horários, uma ousadia do paladar em buscar outros sabores e texturas. O velho cansado que habita em nós vê-se convocado a se retirar. Caminhamos sem perceber as distâncias percorridas, pois quem decide a hora de parar são os olhos. Há um tempo de suspensão das questões cotidianas, burocráticas e protocolares. Há um certo suspense em torno de cada amanhecer. Rejuvenesce-se durante uma viagem. Olhos opacos ganham novo brilho. É tempo de beber de outras fontes, experimentar se deixar ser uma página em branco levada pelo vento. Preencher a vida com uma história outra, que não aquela já tão batida.
A questão é voltar para casa. Temos a sensação que se havia incorporado um santo dentro da gente e que, num só golpe, abandona subitamente o corpo. É isso mesmo, como se corpo e alma se separassem por um tempo e tivessem que tomar fôlego para se reencontrar.
Não se sabe onde se está, que horas são, por onde recomeçar. A mala ainda fechada no meio da sala, um cansaço de anteontem, uma estranheza da casa, da cama, do quadro na parede. Quer-se a suspensão de volta, aquele estado de alienação que nos deixou meio entorpecidos durante a viagem. Tudo isso ficou para trás, é só colocar os pés em casa e dá-lhe realidade! Trabalho, contas para pagar, geladeira vazia, secretária eletrônica cheia, horário do relógio que não bate com o do teu corpo, teu corpo que não cabe dentro dele próprio; sem falar nos bichos que sentem tudo isso às avessas, sem terem colocado seus focinhos para fora, exigem um dono novinho em folha.
A aventura da viagem começa, de fato, agora.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Pessoa e Lacan

Pessoa não economizou em adjetivos pejorativos ao depreciar um humano, nesse caso ele próprio. Em "Poema em Linha Reta" o poeta se apresenta como um porco, vil, mesquinho, ridículo, parasita; enquanto qualquer um que não seja ele próprio, um ideal de virtude. Totalmente maniqueísta sua forma de ver a si e a alteridade, concordo. Mas, prá bem da verdade, não é assim que nos sentimos toda vez que refletimos sobre nossa condição? Se pensarmos que sobrevivemos ao nosso nascimento somente por que um outro se fez presente e permitiu que sobrevivêssemos, compreenderemos por que raios carregamos essa sensação de precariedade e insuficiência para sempre, ainda que, ao longo da vida, nos propomos a colecionar credenciais, medalhinhas e trofeuzinhos, para nos convencer do contrário. O aforismo máximo de Lacan, que delineia sua teoria, fala disso: "o desejo é sempre o desejo do desejo do Outro".
Vamos ao poema.


"Poema em Linha Reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza."

Álvaro de Campos
Extraído de "Fernando Pessoa - Obras Poéticas", edição de 1972

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Sutilezas da língua

Sempre achei o inglês britânico lindo, puro, as sílabas bem pronunciadas num ritmo melódico, erudito e elegante. Nos filmes, uma maravilha. Comum suspirar quando se ouve um "today", "can" ou "wait" ditos com os "as" pronunciados no mesmo som do "a" do nosso alfabeto. É lindo o sotaque, remete-nos a Shakespeare, Oscar Wilde, Virginia Wolf. De repente, passa-se a conviver com os ingleses, que não são nem os professores dos programas de intercâmbio e nem uma das famílias que recebem os estudantes. Aí, a coisa muda de figura. Aquela musicalidade toda na pronúncia das palavras torna-se um "nightmare", como costumam repetir os ingleses para se referir a fatos ou pessoas horríveis. Na primeira vez que eles falam contigo e tu não entendes, nem com o contexto dado, a gente lembra daquelas expressões salvadoras que aprendemos ainda no colégio: "pardon?", "sorry?", "could you repeat, please?". Numa postura de humilde educação e simpatia. Isso acontece muito na hora do consumo. De um lado o estrangeiro ávido por aquele objeto, de outro o comerciante convocado a por dinheiro no caixa. Todos sempre se entendem. O bicho pega é quando se está atrasado, nervoso ou com fome; e, aquele mesmo sotaque, outrora lindo, te impede de entender obviedades cotidianas. Aí, sem intenção de ofender, mas num ato de puro desespero a gente fala: "what?" E isso, no reino unido da rainha e seus príncipes, é motivo de desunião. Separa uns dos outros, os educados dos mal-educados. Na hora, dá vontade de mandar o proprietário daquele "accent" para aquele lugar e voltar correndo para casa. Agora, se tu estiveres em boa companhia, pessoas espirituosas, desarmadas e descomplicadas, estes episódios podem render muitas risadas e imprimir na memória um gosto de quero mais.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

A casa de Freud


Foi nesta casa que Freud passou o seu último ano de vida – de 27 de setembro de 1938 a 23 de setembro de 1939. Como dá para ver, é uma belíssima e imponente casa na elegante rua Maresfield Garden de número 20 em Londres. Acontece que a casa da rua Berggasse em Viena, onde Freud viveu e atendeu seus pacientes por quarenta e sete anos, teve que ser deixada por ele e sua família à revelia. Freud resistiu bastante tempo à perseguição nazista quando comparado com seus colegas sionistas. Muitos psicanalistas judeus já tinham começado a debandar em 1933, quando tiveram seus trabalhos publicamente queimados na Alemanha. Freud se recusava a fugir, mas quando a Áustria foi anexada à Alemanha ele não viu outra saída. Chegou em Londres em 06 de junho de 1938 e alugou uma outra casa até se mudar para esta. Depois de sua morte, aos 83 anos, a casa continuou sendo ocupada pelos seus familiares. Anna Freud morreu em 1982 e, a seu pedido, a morada do pai da psicanálise e também seu pai foi transformada em um museu e aberto ao público em julho de 1986 - todos os objetos estão irretocavelmente conservados: livros, quadros, divã, poltrona, cinzeiro, tapetes. Durante esse período Freud estava indignamente doente; o câncer em seu palato, que havia começado há dezesseis anos, o castigava sem dó nem piedade, infligindo-lhe mal-estar constante e lancinante dor. Martha, sua mulher, Anna, Minna Bernays, sua cunhada querida, com quem ele tinha mais afinidades do que com sua mulher, e a governanta Paula Fichtl acompanharam Freud no martírio de sua doença. Intrépido diante de seu calvário, Freud submeteu-se a dezenove cirurgias empíricas e ineficazes, intercaladas por inócuas sessões de radioterapia, sem interromper sua produção intelectual. Foi sob essas condições que Freud escreveu uma de suas obras mais importantes: “Moisés e o Monoteísmo”. Além deste, Freud deixou inacabado “Outline of Psychoanalysis “. No mesmo ritmo em que escrevia seus trabalhos, recebia seus pacientes. Os pacientes de Freud sofriam as dores da subjetividade. Freud sofria o suplício de sua doença e as agruras da guerra, que numa dessas, levou uma de suas filhas. Sua família, especialmente Anna, admiradora e propagadora incondicional dos fundamentos teóricos do pai, sofria a iminência de sua morte. O “mal-estar na civilização” estava literalmente declarado. Freud sofria na carne a dor que seus pacientes referiam sentir na alma e na alma a dor de tudo isso junto. Lutou bravamente contra a miséria e a mediocridade humanas até seus últimos dias. O seu legado, tão coerente entre teoria e prática, pede, no mínimo, que tenhamos coragem.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Gatos


Os gatos já são lordes por natureza. Agora, imaginem um gato inglês, senior de nove anos, lindo, bem nutrido e idolatrado pelos seus donos. Assim é Bentley, sóbrio e, a maioria das vezes, indiferente aos apelos dos hóspedes carentes. De vez em quando, ele até te permite acariciá-lo, dá uma uma ronronada, ou se esfrega na tua perna. Mas, que fique bem claro, é só quando ele quer. Do contrário, põe de lado sua pose de lorde inglês, e parte para cima com uma reação nada contida. Tive muitos gatos quando era criança, agora tenho cães. Não sabia mais como era ter um gato me fazendo companhia. Confesso que estou gostando. Muito.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Máximas de Guimarães Rosa em Grande Sertão Veredas

"Viver é negócio muito perigoso..."
"Ser forte é parar quieto; permanecer."
"Desespero quieto às vezes é o melhor remédio que há. Que alarga o mundo e põe a criatura solta."
"...eu não sentia nada. Só uma transformação, pesável. Muita coisa importante falta nome."
"Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura."
"Coração mistura amores. Tudo cabe."
"O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem."

Poesia nunca é demais

"A função da arte/1

Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar.
Viajaram para o Sul.
Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto o seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:
- Me ajuda a olhar!"

Eduardo Galeano em "O Livro dos Abraços"

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Adiamento

Certa vez, articulei o poema de mesmo nome do título com o tema da neurose obsessiva, com a idéia de ilustrar uma questão crucial dessa estrutura. Um dos sinais evidentes no discurso dos obsessivos é a procrastinação. Uma ruminação de pensamentos inócuos e repetitivos que ficam circulando em todos os espaços da mente e que se espalham pelo corpo também. É de cravar. Pensa-se no que poderia ter sido, no que se deveria ter dito e no que não se deveria ter ouvido – todas representações do passado. Ou então em como será daqui para frente, o que fazer, o que falar, no que se transformar – tudo representações do futuro. Bom, já deu para perceber que o que falta nesse jogo estéril e histérico de quem padece dessa neurose são as representações do presente. O "aqui" e o “agora” foram interditados, ou estão adiantados ou atrasados no tempo do obsessivo. Resta, assim, se lamentar e se consolar com Pessoa, que, sem intenção alguma, faz paródia com o neurótico obsessivo.

“Adiamento

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas em um edital...
Mas por um edital de amanhã
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...

O porvir...
Sim, o porvir...”

Fernando Pessoa, em Tabacaria e Outros Poemas 14/04/1928

quarta-feira, 21 de julho de 2010

À Prova de Morte - Dir. Quentin Tatantino

Última sessão de domingo, amigos cinéfilos e eu fomos conferir não o mais recente trabalho de Tarantino, porque Bastardos Inglórios foi o mais recente, mas o mais polêmico entre eles – a crítica caiu matando.
Inevitável não psicanalisar sobre ele. O filme tem como protagonista o ator Kurt Russell, numa ótima atuação, fazendo o papel de um perversão escrachado - adornado com todos os clichês da maldade. Quando digo perverso, refiro-me às variadas definições que a palavra traz. Vou explicar melhor. O termo “perversão”, em seu uso corrente, tem uma conotação desagradável, negativa. Para a psicanálise não é a regra. A perversão constitui uma estrutura, ao lado da neurótica e da psicótica. O sujeito perverso, de um modo bem sintético, é aquele que conhece a lei, conhece a castração, mas a renega, utilizando-se do artifício do fetiche para tamponar a falta constituinte de todo o humano. Não dispomos, infelizmente, senão de uma única palavra – perverso - para designar indistintamente os sujeitos marcados pela perversidade e aqueles que sofrem de perversão dos instintos elementares e que configuram a estrutura perversa postulada por Freud e revista por Lacan. Aliás, o uso confunde abusivamente essas duas categorias, entre as quais existem obscuras e freqüentes associações. O perverso de estrutura clínica, afirma Lacan, é aquele que sabe do gozo do outro e se coloca a suturar sua falta, fazendo com que o outro acredite que não há castração. Cair nas teias nefastas do perverso não é prerrogativa de poucos. É muito fácil. Se ele sabe do seu modo de gozar e te oferece exatamente o que te faz gozar, como não cair? Lembram do Barba Azul, do Don Juan, maníaco do parque? O que eles tinham em comum, a não ser o fato de se darem de corpo e alma a obturar o desejo do outro? Por que aquelas mulheres caíam nesse logro? Elementar, não é?
O único consolo é saber, tanto pela teoria quanto pela prática, que nem todo o algoz foi um dia vítima, mas que toda vítima, quando sobrevive, incorporará um algoz mais competente que o seu próprio mestre.
O filme trata disso.
Deixo para vocês a decisão de assistir ou não ao filme. Não estou recomendando, pois como o tema mexe com os nossos diabinhos, uns gostam e outros nem tanto.
“O que induz a gente para más ações, estranhas, é que a gente está pertinho do que é nosso, por direito, e não sabe, não sabe, não sabe!” Guimarães Rosa em Grande Sertão Veredas

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Há Pessoa e Pessoas

Numa conversa prosaica sobre poesia, uma amiga me falou que ouviu de uma outra amiga uma observação curiosa. Esta última falando sobre poesia com o namorado fez a seguinte asserção: “o que você quiser saber sobre a vida está em “Tabacaria”, tá tudo lá.”
Não preciso nem dizer da sede que tive de chegar em casa para pegar os meus Pessoas. Agarrei-me aos livros com todos os sentidos aguçados. Uma pueril emoção se instaurou em mim ao ler a palavra “Tabacaria” ainda no índice. O engraçado é que li este poema mais de uma vez e até cheguei a articular algumas de suas estrofes com a psicanálise. Mas daí a uma pessoa ter a intrepidez de afirmar que “tudo” que você quiser saber sobre a vida está lá...
... e não é que tá mesmo!
Neste momento, você que, conheça "Tabacaria" ou não, goste de Pessoa ou não, deve estar louco para chegar em casa, ou numa livraria, ou num computador só para conferir o axioma proposto por essa pessoa que nem conheço, e que me agraciou com seu dito.
Separei uma estrofe só para dar água na boca. Não, na boca não. A água que vai dar é nos olhos.

“Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara.
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.”

Álvaro de Campos em 15/01/1928

E durma-se com um barulho desses...

Insônia e Ratos

Clarice Lispector sofria de insônia. Acho que ela debutou nas pílulas para dormir. Contam seus amigos mais próximos, que muitas vezes ela exagerava na dose. Ficava sem dormir à noite e durante o dia caía pelas tabelas.
Quem padece desse mal sabe muito bem o que é isso. Engraçado perceber que quando investigamos a intimidade dos artistas, a troca do dia pela noite é fato trivial.
Não sei o que acontece, mas a noite é inspiradora, a solidão das horas vazias, o barulhinho do relógio na parede, a escuridão lá fora. A impressão que tenho é que durante a noite estamos mais perto do nosso inconsciente, esse buraco negro intangível que não controlamos, pois voluntariosamente autônomo quando “ele” quer dar as caras. Freud dizia que o homem havia sofrido três quedas narcísicas drásticas: a primeira, quando lhe é revelado que a terra não é o centro do universo, a segunda quando Darwin diz que somos parentes da macacada e a terceira quando o próprio Freud, a partir da descoberta do inconsciente, afirma que não somos donos da nossa própria casa - é o inconsciente que manda e desmanda. Se Freud vivesse agora iria saber que ainda há uma quarta queda narcísica:.. há, há, há, o código genético de um humano está mais próximo dos ratos do que dos gatos! Quem diria? Nosso DNA é mais parecido com o dos bichos repulsivos que vagueiam pelos esgotos do que com o dos inocentes gatinhos peludos que são predadores dos primeiros? Que doideira! Não a constatação dos cientistas! Mas, como de Lispector e insônia vim parar em ratos? Hum, tenho uma vaga idéia, é que me lembrei do Chico, insone incorrigível. Em minha opinião de fã incondicional, acredito que a sua mais antenada e criativa composição desse século seja “Ode aos Ratos”. Nessa música Chico, inspirado pelas descobertas científicas sobre os genomas, lembra aos pobres humanos que dentro deles habita um roedor nada seletivo que anda pelas sarjetas e come o que tiver pela frente, com seu “focinho gelado e couraça de sabão”.
Em um show de Mônica Salmaso num tributo a Chico que assisti, ela conta algumas conversas de bastidores.
Dizem que o Chico antes de concluir a música, ligou para o Paulo Vanzolini, músico e biólogo apaixonado, para perguntar como eram os ratos, pois queria ser o mais fiel possível quando fosse descrevê-los. O diálogo se deu mais ou menos assim:
- “Oi Paulo, aqui é o Chico, tô ligando porque sei que você que tem a maior afinidade com bichos e precisava que você me descrevesse como são os ratos, pois estou compondo uma música sobre eles.”
- “Ah Chico, você que já inventou tantos adjetivos para falar das mulheres, então mente aí qualquer coisa para os ratos.”
- “Não dá Paulo, pelos ratos eu tenho o maior respeito...”
Ah, esse Chico, além de tudo é espirituoso...
Voltando à insônia, os ratos são notívagos por motivo de sobrevivência, para fugir dos predadores, pois à luz do dia são presas fáceis. Seguindo esta lógica, estariam os insones, ao permanecerem de vigília, também fugindo de algo, seria, talvez, dos desígnios do seu próprio inconsciente? Boa pergunta. Enquanto isso, depois dessa revelação da ciência, os insones podem ficar mais sossegados. Não estão sozinhos em suas noites longas e não estão acompanhados por meros desconhecidos. Seus companheiros são fraternos. Pois é. Os seus “irmãozinhos” de nariz gelado, dentões afiados, orelhinhas pontudas e passinhos rápidos, na calada da noite... estão bem felizinhos e acordados. Muitos deles até assombrando os sonhos dos infelizes insones quando, por exaustão, conseguem dar uma cochilada.

Lembrei agorinha do “Homem dos Ratos” – caso paradigmático de Freud sobre a neurose obsessiva -, mas isso já é assunto para outra hora.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Amigos, psicanálise e poesia...


...uma coisa leva à outra.

Freud acreditava que o artista expressa em sua obra uma intenção e que essa intenção deveria produzir em nós a mesma constelação mental que o artista teve no momento da criação. A intenção do artista poderia ser comunicada e compreendida em palavras junto com todos os outros fenômenos da vida mental. É bom lembrar que Freud usa o verbo no futuro do pretérito: “deveria” despertar em nós... Sabemos que nem todos têm a possibilidade – e isto não é uma questão intelectual - de serem capturados pelos sentimentos que os artistas experimentaram no momento do despertar, a ”bon-heur” como diria Lacan, a hora boa, a sorte feliz, pois essa hora é tanto imprevisível quanto fugidia.
Bom, vamos ao ponto aonde quero chegar.
Hoje, minha “bon-heur” se deu no encontro com uma amiga que, generosamente, me fez reencontrar Drummond.

“Ausência

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão apegada,
aconchegada nos meus braços,
que rio, danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.”

Carlos Drummnond de Andrade (1902-1987)

quarta-feira, 14 de julho de 2010

A sustentável leveza do cão


“Todas as famílias felizes são iguais. As infelizes o são cada uma a sua maneira.” Com essa introdução, inicia o russo Tolstói o seu romance Ana Karenina, publicado, pela primeira vez, em 1873. A personagem principal, aquela que dá o título à obra, é uma aristocrata russa, que supostamente possui alguns dos adjetivos que os simples mortais mais desejam: riqueza, beleza, poder, popularidade. A despeito de tudo isso, Ana Karenina sente-se entediada e vazia. Esses sentimentos só regridem quando Ana Karenina encontra aquele que arrebata a sua alma e faz sua razão definhar, o irresistível oficial Conde Vronski. A partir do caso extraconjugal de Ana com o Conde Vronski a trama se desenrola. Mas não pensem que o romance se reduz a um drama passional. Tolstói vai além. As pessoas que habitam seu romance estão todas ocupadas com o insondável, o intangível da existência humana e passam o romance todo a tentar desvendar o inescrutável da falta a ser.
Na esteira de “Ana Karenina” está “A Insustentável Leveza do Ser” (1983). O tcheco Milan Kundera, no seu capítulo primeiro, alude a Nietzsche e a sua lei do eterno retorno. “...pensar que um dia tudo vai se repetir tal como foi vivido e que essa repetição ainda vai se repetir indefinidamente! O que significa esse mito insensato?” Ao referir-se a Nietzsche e a sua lei logo de cara, Kundera acolhe esse “ eterno retornar”, pois os questionamentos sobre a obscuridade perturbadora da existência de seus personagens são equivalentes àqueles nos quais os personagens de Tolstói estão mergulhados. Inclusive, não é por acaso, que ele ressuscita, através de Karenin, a alma desassossegada de Ana Karenina. Karenin é o nome do cão dos insustentáveis de Kundera: Tereza, Tomas e Sabina. No entanto, Karenin, por não pretender outra coisa, senão ser um cão, faz com que alguns sentimentos de calmaria e alento tenham lugar na mente dos seus donos atormentados.
Pensando ainda no eterno retorno, o que teria a insatisfação e inquietude permanente de Tereza, Tomas e Sabina em comum com as vidas sombrias e errantes de Ana Karenina, Tolstói e Nietzsche? Talvez, a melancolia nostálgica de todo o humano em busca do objeto para todo sempre perdido, do qual ele não tem a menor idéia do que seja e que, mesmo assim, insiste em nomear.
E o cão? O cão não se sabe cão e, muito menos, de onde vem Karenin. Bom para ele. Triste. Muito triste para nós.

p.s. minha inspiração para escrever sobre Ana Karenina surgiu a partir dos escritos corajosos e sensíveis postados em um outro blog também dedicado à insustentabilidade da alma.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Psicanálise e Literatura

Freud já reconhecia as estreitas afinidades entre a psicanálise e a literatura por conceber que psicanalistas e escritores ocupam-se da subjetividade e valem-se da palavra para tentar dar um pouco de alento às indagações humanas.
“A familiaridade entre a psicanálise e a literatura, tendo os dois, origens sediadas em nossa vida onírica inconsciente e ambas lidando basicamente com a palavra permite o estabelecimento, entre elas, de iluminação mútua.”

Não precisa dizer mais nada, é só sentir...

“Aprendo com abelhas do que com aeroplanos,
É um olhar para baixo que eu nasci tendo.
É um olhar para o ser menor, para o
insignificante que eu me criei tendo.
O ser que na sociedade é chutado como uma
barata – cresce de importância para o meu
olho.
Ainda não entendi por que herdei esse olhar
para baixo.
Sempre imagino que venha de ancestralidades
machucadas.
Fui criado no mato e aprendi a gostar das
coisinhas do chão –
Antes que das coisas celestiais.
Pessoas pertencidas de abandono me comovem:
tanto quanto as soberbas coisas ínfimas.”

Manoel de Barros, poeta mato-grossense, em o “Retrato do Artista Quando Coisa” (1998)

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Almas à venda - Dir. Sophie Barthes (2009)


No último domingo, assisti ao filme “Almas à Venda”, cujo título original é “Cold Souls”. É no mínimo curioso imaginar a situação. Durante o ensaio de uma nova montagem da peça "Tio Vânia" de Tchecov, o ator que vai representar tio Vânia vê-se assombrado por uma angústia inominável, carregada de sintomas insuportáveis, que não lhe permite dar o tom ao personagem - tio Vânia não deve ser nem cômico nem trágico. O seu agente, afetado pela sua dramática condição, fala-lhe sobre um tipo de tratamento que pode ajudá-lo, mas ele ignora ambos. No entanto, mais angustiado fica ao chegar em casa e perceber que sua vidinha doméstica mostra-se um grande e inesgotável tédio. Mergulhado nesse desconsolo, nosso protagonista se dá conta que nem de sua mulher ele dá mais conta. Ela está visivelmente insatisfeita. Sem saber direito o que fazer, senta-se numa poltrona e começa a folhear uma revista desassossegadamente. Fato nada surpreendente: ele encontra uma propaganda sobre o mesmo tratamento mencionado pelo seu agente nas páginas da revista. A clínica que presta os serviços chama-se “soul storage” - depósito de almas - e é para lá que, reticentemente, ele se encaminha. O tratamento consiste na extração da alma atordoada do sujeito, retirando de seu ser toda a intranquilidade, os pensamentos obscuros, a tristeza e o medo, deixando em seu lugar um pacífico vazio, um nada. O mais inusitado é que a alma ficará congelada nesse depósito até que o seu proprietário decida resgatá-la. Durante esse período, o paciente fica desalmado. Acontece que, passados alguns dias, da tal da deserção da alma, o camarada começa a se sentir estranho, oco, opaco e passa a desejar suas aflições de volta. Decidido, ele retorna à clínica e reivindica sua alma penada ao médico responsável. Só que o cientista, também assertivo, convence-o de que, reimplantar sua velha alma, seria o mesmo que uma condenação à infelicidade. Preocupado com aquele pobre coitado desalmado, o inescrupuluso médico sugere que ele alugue a alma de um outro alguém. Inclusive, havia uma lista de almas a serem alugadas, como as de cientistas prêmios Nobel, de compositores brasileiros, de poetas russos, entre outras. Mas, para um ator que precisava atuar Tchecov na Broadway, é claro que ele não pensa duas vezes e se atira de cabeça na alma de um poeta russo. No início, tudo parece perfeito. Ele se sai bem na peça, passa a ter desejo pela própria esposa, sente-se renovado com a pregnância daquela alma alheia. O único senão é que decorrido algum tempo - não muito -, tudo começa a ser muito para ele. É muita sensibilidade. É muita vitalidade. É muita voracidade. Resultado: ele volta à clinica porque não consegue sustentar a tamanha subjetividade daquela alma poética e deseja desesperadamente sua alminha sintomática de volta.
O restante do filme não vale a pena contar, é previsível e cabe bem no “american happy end”.
Mas, para quem gosta de psicanálise, já dá o que pensar.
Colette Soler dialoga com esta temática em “L’ídentificacion au symptôme... ou pire” (1999):
“Quando Lacan diz que identificar-se ao sintoma é o que pode ser feito de melhor, ele deixa a entender claramente que há outras possibilidades... piores”.