segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Realidade

Hoje meu mundo amanheceu mais pobre. Minha casa ganhou metros quadrados e silêncio, meu tempo devolve-me horas ao acaso, meu pensamento pode incorporar novos sonhos e projetos, meus pés estão prontos para pisar em outros territórios, e, ainda assim, meu mundo está infinitamente mais pobre. Hoje o dia clareou mais cedo e trouxe com ele um espantoso excesso de realidade. O foco e a nitidez das imagens são de uma exatidão desconcertante. A lente é ultrassensível e precisa, não há tremor nas mãos que a faça perder o foco, embaralhar ou embaçar as imagens. As cores, as formas e os tamanhos são extravagantemente reais. Não há vultos, sombras ou sujeiras. Nada se mistura. Nada está irreconhecível. Nada engana. Passado e presente não se confundem, meu olho consegue discriminar tudo. A crueza da luz e o abuso das cores poderiam até cegar. Pena, mas não, meu olho nu se aguça ainda mais. Fulvio, amigo ultrassensível como a lente de que falo, tenta me advertir: Marcia, a realidade não dialoga, a realidade é um monólogo. Secura na boca, traqueia estreita. E, com isso, ponho minha viola no saco, engulo a sentença e fecho os olhos para dormir, pois meu sono hoje tem o silêncio da casa grande e o relógio alargador de horas.

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Quando a gente não se despede

Flutuamos involuntários dentro de um labirinto escuro e sufocante toda vez que a gente não se despede. Queremos achar a saída, pisar em terra firme. Sabemos que temos que dobrar à direita, mas uma força qualquer te empurra para a esquerda. Gritamos que a saída não é para lá, mas essa espessa força movediça te leva para aqueles lados. Quando não há despedida o amor fica à deriva, perde o prumo, não vai para o sul nem para o norte, vai roubando teu sono como um desalmado zumbi para depois devolvê-lo durante o dia diante de um vil senhor do engenho. O amor desalinhado não encontra mais o destinatário e retorna em desatino ao coração do remetente, que tonto de dor não sabe o que fazer com ele. A boca da gente não para de se repetir, alienada coitada, tem esperanças de que falar pelos cotovelos irá transformar a dilacerante ausência em um pinguinho de presença. Choramos para que a aguaceira lave as imagens últimas, derradeiras, e que regue as lembranças felizes. Vivemos para que a mente irrigue-se de pensamentos outros e para que as memórias doentes curem-se e aconcheguem-se, delicadas e coloridas como uma bolha de sabão, mornas e macias como o corpo do meu cão.

sábado, 27 de setembro de 2014

Pensamentos clandestinos

Ando mesmo em linha reta. Minha rotina de afazeres é bem prosaica. De manhã, café, jornal, bichos, trabalho. De casa, direto e reto para o consultório. Detesto interrupções no caminho. Minhas rotas são cronometradas de tal forma que nunca – sei que esta palavra é maldita na psicanálise – me atraso. E isso vale para tudo, encontro com amigos, cinema, aeroporto. Ao contrário, estou, na maioria das vezes, alguns minutos adiantada. De casa para o cinema ou do cinema para casa. E sempre que uma programação acaba– outro vocábulo a ser evitado – quero voltar imediatamente para casa. Sim, estou eternamente numa corrida olímpica. Sem pódio de chegada ou beijo de namorada, como dizia o poeta. A galope andam também meus pensamentos, só que diferentemente dos meus trajetos em linha reta, eles transitam na diagonal, em zigue-zague, na contramão e, não contentes, fazem ultrapassagens ordinárias. Ora adiantados ora bem atrasados. Da conta no banco ao remédio que não lembro se tomei. De um dia de outono em Porto Alegre em que eu e minha irmã levamos meu pai para ver o pôr do sol do Guaíba à ração do cachorro que preciso comprar. Da sensação que experimentei quando dormi pela primeira e única vez em um saco de dormir à poesia do Quintana. Das chuvas alegres e pontuais em Belém do Pará à consulta que preciso agendar com o dentista. Os dias de inverno nas manhãs ensolaradas em Vinhedo são invadidos pelo dia do último aniversário da minha mãe, mesmo dia em que me despedia dela com um tchau e ela se despedia de mim para sempre. Woody Allen me visita, duelos entre ciência e magia se impõem na bagunça que está a minha agenda. Organizo-a em algum canto da minha cabeça e percebo que esqueci a própria em casa, ou será no consultório? Olha a lua, está muito cheia! Viagens noturnas também se imiscuem nos meus pensamentos mais bobos. O sonho da noite anterior se joga do abismo quando espero para atravessar a rua. Acho que o carro dirigido pela mulher com cara de braba o despertou. Aliás, penso se dormi ou não na noite passada e se sim, por quanto tempo. Pão e poesia. Ah esses dois clandestinos, como uma aranha armadeira, entram sorrateiramente e, de repente, saltam. Susto. Pensamentos rodopiam em desatino. Cansaço.

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Amores silenciosos

Sempre fui do tipo que não faz alarde com quase nada. Raramente fui tomada de deslumbramento por coisa alguma. Não me lembro de ter tido muitos surtos de riso ou de choro. Tão pouco frequentes são meus ataques de riso que poderia até narrar da última vez que uma risada solta e sonora se estampou na minha cara. Mas não vale a leitura de vocês, fatos comuns, situações ordinárias, nada que fosse motivo para tanta graça. Talvez eu estivesse num bom dia e a reprodução de uma história banal tornou-se hilária. Da mesma forma é o meu derramamento de lágrimas. Já encharquei muito meus olhos cortando cebolas. Já, por tristeza, não. Meu choro, nas pouquíssimas vezes que aflora, é contido, baixinho, acanhado. Minha tristeza é bem silenciosa. Também nunca soltei um grito de alegria ou fiquei tão eufórica a ponto de pular ou cantar. Nos momentos em que mais me senti alegre, as manifestações do meu contentamento foram caladas. Lembro-me de dois momentos especialmente felizes em que experimentei a certeza de que aquilo que sentia era a expressão máxima da minha felicidade. Dois momentos extremamente silenciosos. Guardo tudo na memória, não quero que esses sentimentos jamais se percam de mim. Com meus amores não é diferente. Não tenho os arroubos de encantamento e arrebatamento avassalador que as paixões produzem. Não enlouqueço de paixão. Meus amores, assim como minhas alegrias e tristezas, nascem e morrem no mais pacato silêncio.

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Meu Quincas amado

Se tu fosses da espécie humana eu poderia ter te escrito milhares de cartas dizendo tudo que eu sentia por ti. Cada dia que passaste comigo significou muito para mim. Nos dias em que estava mais otimista com a vida, ver teu rabinho balançando de manhã quando abria a porta da cozinha, fazia minha alma festejar também. Dizia para você: Cadê meu nego gordo safado? Cadê meu Quicão sem vergonha? Tu não tem vergonha nessa tua cara preta? Cantava para ti: Qui qui qui qui é esse que vem da Sapucaí... ou o Quica não lava o pé... Lá vem o negão cheio de paixão. E tu correspondias com o sacolejar de todo o teu corpinho aos meus infantilismos matinais. Olhavas para mim com teus olhos de bola de gude pretas e gigantes, onde aparecia uma meia lua branca na parte inferior da pálpebra, para comunicar que tu estavas ali e que tu estavas feliz simplesmente por eu estar ali contigo; e que aquele dia seria mais um dia em meio a tantos outros dias que seriam exatamente iguais aquele, e seria maravilhoso precisamente por isso, porque se repetiria ritualisticamente as mesmas emoções que há nos encontros entre um cão e seu dono. Não importando se o dono foi só até atrás da porta colocar o lixo para fora e voltou. Eu estava ali e tu também. Na verdade, só isso interessa a um cão. A casa do cão é onde o dono está. O apetite do cão se dá quando o dono chega em casa. Beber água, fazer xixi é muito mais divertido quando o dono está por perto. E assim era nossa rotina, em meio a latidos e rabinhos frenéticos, todos os dias eu fazia meu café da manhã e tomava com vocês, colocava duas fatias de pão na torradeira, uma para mim e outra para vocês. Tu eras bem esganado, roubavas o pedaço do Calu. Muitas vezes vocês até brigavam por uma migalha de pão. Tu eras bem maior que o Calu, por isso eu sempre o defendia de ti, cheguei até a te dar umas palmadas quando brigavas feio com ele. Puxava-te pelas pernas de trás quando tu saltavas em cima dele e não querias sair. No final, até a Lia se metia na peleja, mas sempre obediente, no primeiro “para Lia”, ela já se retirava. Tu nunca te voltaste contra mim, nunca me mordeste. Sempre foste um cão generoso comigo. Já o Calu... Bom, voltemos a falar de amor, todos os dias depois do meu primeiro café acompanhada de vocês três, preparava uma segunda xícara de café que levava para sala junto com meu jornal na ilusão de lê-lo. Este era o meu ritual. Só que vocês também queriam participar do meu ritualzinho. Sentava no sofá, com um de vocês de cada lado e mais a Lia, tentando equilibrar o jornal e a xícara. Difícil ler jornal e tomar café contigo, Quincas. Tu puxavas a minha mão com a tua pata para que eu te fizesse carinho. E nisso, Quincas, tu eras o cachorro mais insistente que já tive, nunca nenhum outro cachorro exigiu tanto carinho de mim quanto tu. Tinha que te dar bronca para fazer com que tu parasses com aquela bendita pata pidona roubando minha mão do jornal. Quando eu me negava a obedecer teus mandos, quando tu não me convencias a estender minha mão até a tua cabeça, tu estendias tua cabeça para baixo da minha mão e me persuadias a te obedecer. E pensar que quando te trouxe para casa, com quarenta dias, o teu apelido era pirainha de tanto que tu gostavas de brincar de morder com teus dentinhos de leite que chamávamos de agulhinhas. Mas de tanto te fazer carinho para parar com essa mania, tua marca passou a ser a exigência constante e imediata de afagos. Diferentemente do Calu, cuja marca é o pedido do Biscrok e, quando mais novo, o brincar compulsivo de jogar bolinha e da Lia, cuja maior marca é se enfiar embaixo da minha cama e se esconder, deixando um rabo de 30 centímetros de fora, além de encarar a chuva como o maior inimigo na face da terra; tu eras um pedinte de cafuné insaciável. Tudo isso aconteceu diariamente, muitas vezes ao dia, durante semanas, meses, anos. Quatorze anos. Mas o que tu, Quincas, mais gostavas mesmo era de colo, tu eras um cão de colo. Se eu te colocasse no meu colo, tu ficavas imóvel e dormias escarrapachado nos meus braços pelo tempo que tu pudesses. Enquanto eu não me cansasse e te colocasse de volta ao chão, tu ficavas comigo. No meu colo tu te amolecias inteiro, teu corpinho se amalgamava de tal forma no meu colo que parecia que havias nascido ali. Sentei milhares de vezes na cadeira da cozinha e te coloquei no meu colo. Se gostavas disso? Acredito que era o teu céu. Pois, para mim era a minha terra. Era quando sentia meus pés bem conectados a terra. Tu eras o meu urso fofo e estavas totalmente entregue a mim. Coisa mais linda do mundo a foto que tenho contigo no meu colo. Do que gostavas muito também era de água, não podias ver uma piscina, um riacho, uma poça d’água suja, um mar bravio, lá tu te jogavas, não importava o perigo. Na piscina da casa de Vinhedo tu nadavas feito um peixe, jogavas bolinha contigo mesmo, arremessavas a bolinha dentro da água para tu mesmo te atirar, mergulhar, nadar e pegá-la. Fazias isso compulsivamente, só paravas quando perdias o fôlego. Uma vez, ao visitar o terreno que uns amigos compraram em Jundiaí, tu te atiraste num córrego fundo e sujo e depois não conseguias sair. Havia capivaras correndo atrás de ti. Tu começaste a tentar sair da água, mas resvalavas no barro da borda. Até que depois de algumas tentativas, bravamente conseguiste sair e sobreviver à fúria das capivaras. Tive que te dar um banho com uma mangueira surrupiada da casa de um morador local, pois estavas todo enlameado e ainda tínhamos que voltar para casa no carro dos meus amigos. Não preciso dizer que detonamos o banco traseiro do carro com a umidade de um cão mal lavado. Outra cena engraçada e inesquecível foi quando te dei uma comida gostosa e lambuzada e tu lambeste o pratinho com tanta vontade que o arrastou por todos os cantos da cozinha, inconformado por ter se esvaziado tão rápido. Quando não havia mais nem cheiro da comida no pratinho, tu te puseste a lamber ao redor do teu focinho para capturar os vestígios de sabor que tinham ido parar nos teus pelos. Tua língua era tão comprida e ágil que conseguias alcançar quase até embaixo das tuas pálpebras. Tua cara lambida era ainda mais linda. Fiquei rindo à toa ao assistir às manobras do teu linguão. Mas como não há plenitude em nada e sim impermanência em tudo, eu também tinha dias ruins. E quando eu não estava nos meus melhores dias, pensava que precisava ficar bem, pois tinha que te levar para passear, tinha que limpar os jornais que não havia conseguido ler no dia anterior e que eram todos teus à noite. Tinha que preparar a comidinha de vocês. Não tinha como ficar sozinha irrigando a minha depressão. Era preciso me mexer. Tu, a Lia e o Calu já estavam despertos e queriam o mesmo do dia anterior. Queriam festa, musiquinha de cada um, afagos, beijos. Num frenesi radiante rebolavam para mim seus corpinhos, pulavam, muitas vezes até me machucarem com seus arranhões, era tanta alegria e disposição que, ao fim e ao cabo, eu acabava me deixando contagiar por vocês. E tu, meu Quincas lindo, se tivesses ainda como me encontrar, eu me perderia em ti, balançaria todo o meu corpo numa dança desengonçada para te alegrar, me jogaria por inteiro em cima de ti, exploraria com as minhas mãos os teus pelos macios e enfiaria minha cabeça embaixo da tua, te olharia com meus olhos miúdos de quase gente até gravar para sempre detalhes da tua carinha na minha memória, me aconchegaria no teu colo, te cheiraria das patas às orelhas; convocaria uma orquestra para tocar na minha alma tuas musiquinhas, faria isso tudo só para poder sentir o que tua sentias quando dividiste tua vidinha comigo. Não sei muito de amor, não sou muito boa no assunto, mas acho que isso é o mais próximo que consegui chegar do que comumente se chama amor.

quarta-feira, 19 de março de 2014

Carta à Claudia

Quase todos os dias, com a velocidade das informações que chegam por todas as frentes, ficamos sabendo de coisas horripilantes que acontecem mundo afora. Não bastasse a escrita, ainda temos a brutalidade das imagens. Algumas colam de tal forma na retina que nem o cansaço e o sono são capaz de apagá-las. Estamos em março, e já neste ano aconteceram alguns fatos que me deixaram perplexa, indignada e deprimida, por fim. Mas não sei muito bem por que o caso da Claudia Silva Ferreira acendeu em mim, além desses sentimentos, dois outros: culpa e vergonha. Assim, queria me desculpar contigo, Claudia, que sou Ferreira como tu, por ter nascido numa cidade do sul, numa vila com nome de rio e não de planta. Por ainda festejar meu aniversário, apesar de ser dez anos mais velha que tu. Por ter frequentado universidade, roda de intelectuais, deitado em divãs; mas não ter aprendido a te proteger. Tu, que tinhas só 38 anos, trabalhavas como faxineira em um hospital, moravas numa comunidade com nome de planta em Madureira, tinhas quatro filhos, ajudavas tua irmã a tomar conta de mais quatro crianças e ias fazer 20 anos de casada. É, tu casaste com 18 anos, mocinha ainda já tinhas casa, marido e filhos para cuidar. Mas te distraiste anteontem quando foste comprar pão. Balas displicentemente perdidas trocadas entre policiais e civis atingiram teu corpo. Depois, além dos ferimentos causados pelas balas, caíste do porta-malas do camburão que te socorria e foste arrastada por 250 metros em uma avenida movimentada. Morreste antes de chegar ao hospital, sarcasticamente lugar onde ganhavas teu pão. Pois então, Claudia, com a tua morte prematura, fizeste muito mais pelo teu país do que eu. Com a tua morte, Claudia, denunciaste mais um ato criminoso no lugar onde vivias e onde ainda teus filhos continuarão a viver. Não deixaste nenhum rastro de dúvida sobre o que fizeram contigo. Mostraste para todo um país como são tratadas as pessoas que como tu, nasceram, cresceram e deram à luz no morro. Abriste mais uma gaveta mal cheirosa que expõe a podridão repugnante do nosso sistema. Meu pesar não muda a tua história, sei disso, mas alivia momentaneamente a minha vergonha perante ti.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Resta a alegria

Arnaldo Jabor, por intermédio do avô vivido por Marco Nanini em seu mais recente filme, afirma categórico, num misto de resignação e encantamento, que a felicidade não existe. O bem possível, passível de merecer algum crédito, é a alegria.
Alguns se perguntariam: mas qual a diferença entre felicidade e alegria?
O que discrimina felicidade e alegria? Quais os signos que estariam presentes numa e noutra?
Arriscando um palpite, acredito que a felicidade seja um bem supremo. É alcançada quando todos os nossos órgãos estejam em silêncio, isto é, sem qualquer espécie de dor ou desconforto, que a nossa mente esteja num estado perene de contentamento, nosso coração inchado de amor e bondade e o nosso espírito envolto em uma nuvem clara de paz e harmonia. O que falta? Ah, faltou falar do prazer. Os prazeres da mesa, do sexo, das emoções intensas.
Já a alegria é bem menor, não tem como premissas nem a perenidade, nem a constância, nem a plenitude. É impermanente, incompleta, instável, perecível, fugidia. Pode durar só alguns minutos, com sorte algumas horas, quase um milagre se durar alguns dias. É preciso estar atento as suas aparições. Muitas vezes, ela dá as caras sem nenhum aviso prévio. Quando você se dá conta, está alegre. Acorda de manhã e o café de todo dia vira o melhor café que você já tomou. O jornal de todo dia, jogado no chão do lado de fora da porta, se transforma em um presente. Abrir as janelas torna-se uma dádiva. Respirar, enxergar, ouvir, falar tem outra dimensão. É como se estes atos mecânicos, pela primeira vez, fossem reconhecidos como bem maior.
A grande questão é que fomos preparados para aguardar pela felicidade. Nos votos de qualquer comemoração está sempre impressa a palavra “felicidade”. É Feliz Natal, Feliz Aniversário, Feliz Dia disso ou daquilo. A felicidade está associada à conquista de todos os bens num mesmo período de tempo, algo da ordem do impossível. Há um elemento no projeto que vai estar ausente, e quando este se apresentar, outro faltará. Assim, a felicidade estará inevitavelmente deslocada para o porvir. “É só amanhã...” como diz Pessoa.
A alegria é bem mais tangível. Sua trama é feita de material menos nobre. Suas razões, quando existem, não têm relação com seu produto. Muitas vezes, nem há produtos. A alegria é improdutiva, não pretende nada, não se prende ao futuro, nem se sabe se tem serventia. Ela se dá nos intervalos, é peregrina, plástica. Quando se manifesta faz com que a cara toda ria, os olhos encham-se de água boa, os pulmões quase se afoguem, o coração se alargue. O corpo todo se alegra, as células batem palmas, sente-se um bobo, pueril, deliciosamente desatarraxado dos propósitos.
Esqueça a meta inatingível e extenuante da gulosa felicidade, que quer tudo, que quer mais. Deixe-se apreender pelos modestos e imprevisíveis momentos de alegria: bem de menor grandeza, mas de possibilidade tocável.

“Eu vou te dar alegria... eu vou raiar um novo dia... e cantar e cantar e cantar...” Arnaldo Antunes em Alegria