sábado, 27 de setembro de 2014
Pensamentos clandestinos
Ando mesmo em linha reta. Minha rotina de afazeres é bem prosaica. De manhã, café, jornal, bichos, trabalho. De casa, direto e reto para o consultório. Detesto interrupções no caminho. Minhas rotas são cronometradas de tal forma que nunca – sei que esta palavra é maldita na psicanálise – me atraso. E isso vale para tudo, encontro com amigos, cinema, aeroporto. Ao contrário, estou, na maioria das vezes, alguns minutos adiantada. De casa para o cinema ou do cinema para casa. E sempre que uma programação acaba– outro vocábulo a ser evitado – quero voltar imediatamente para casa. Sim, estou eternamente numa corrida olímpica. Sem pódio de chegada ou beijo de namorada, como dizia o poeta.
A galope andam também meus pensamentos, só que diferentemente dos meus trajetos em linha reta, eles transitam na diagonal, em zigue-zague, na contramão e, não contentes, fazem ultrapassagens ordinárias. Ora adiantados ora bem atrasados. Da conta no banco ao remédio que não lembro se tomei. De um dia de outono em Porto Alegre em que eu e minha irmã levamos meu pai para ver o pôr do sol do Guaíba à ração do cachorro que preciso comprar. Da sensação que experimentei quando dormi pela primeira e única vez em um saco de dormir à poesia do Quintana. Das chuvas alegres e pontuais em Belém do Pará à consulta que preciso agendar com o dentista.
Os dias de inverno nas manhãs ensolaradas em Vinhedo são invadidos pelo dia do último aniversário da minha mãe, mesmo dia em que me despedia dela com um tchau e ela se despedia de mim para sempre. Woody Allen me visita, duelos entre ciência e magia se impõem na bagunça que está a minha agenda. Organizo-a em algum canto da minha cabeça e percebo que esqueci a própria em casa, ou será no consultório? Olha a lua, está muito cheia!
Viagens noturnas também se imiscuem nos meus pensamentos mais bobos. O sonho da noite anterior se joga do abismo quando espero para atravessar a rua. Acho que o carro dirigido pela mulher com cara de braba o despertou. Aliás, penso se dormi ou não na noite passada e se sim, por quanto tempo.
Pão e poesia. Ah esses dois clandestinos, como uma aranha armadeira, entram sorrateiramente e, de repente, saltam. Susto. Pensamentos rodopiam em desatino. Cansaço.
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Que texto!!! Me deixou em estado de graça. Escrever bem é assim, simples assim, profundo assim, belo assim! Adorei
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