terça-feira, 26 de outubro de 2010

O inesperado

Um dia qualquer, idêntico a tantos outros, um mesmo destino, passos frouxos iguais aos de todo dia. Olha no espelho a cara que vê todas as manhãs há muitos anos, ajeita um pouquinho o cabelo com a mão e é só, e é muito. Antes de sair de casa, movimentos mecânicos e decisões automáticas, ligar isso, desligar aquilo, verificar se pegou tudo o que precisa para protagonizar mais um dia. Olha o tempo lá fora, não sabe se faz frio ou calor. A cor do dia não responde de quantos graus está a temperatura. Céu nublado de nuvens claras. Abre um pouquinho a janela e põe uma das mãos para fora. A técnica é ineficaz, continua sem saber, então arrisca, sai do jeito que está. Tudo indistinto até aqui. Nenhuma expectativa além de cumprir sua rotina daquela manhã. Poderia, de fato, ser um dia anônimo, sem data, horário, sítio. No entanto, um acontecimento único, unzinho, pequenininho, quimérico, efêmero, instantâneo, estancaria a mesmice daquele dia e instauraria algo novo, impiedosamente capaz de subverter suas certezas mais sedimentadas. Naquele dia, dia prometido a passar incólume, indiferente, ordinário dia de todos os dias, seu mundo, sem nenhuma premeditação ou anúncio, foi capturado por um olhar. Olhar daqueles que não se conhecem, sim se reconhecem. Olhar do músico vidrado nas notas de suas canções, dos poetas quando a tinta tinge o papel, das mães aos seus filhotes, do marujo ao mar, do menino à pandorga que voa, daqueles que esperam o momento do luzir do pirilampo. De um momento para o outro sua vida corre para os braços e abraços de um pedaço de terra conhecida, presa simplesmente pelo instante que dura um olhar. Coisas do acaso...

sábado, 2 de outubro de 2010

Casamento entre seres de espécies diferentes


Ela, jovem, linda, esbelta, cabelos loiros acinzentados. Ele, igualmente belo, esbelto, já não tão jovem, mas exibindo uma cabeleira negra digna de nota. Ela esperando ansiosa pelo encontro com aquele que dividirá o ninho de amor que vem construindo zelosamente dia após dia. Ele, nem em devaneios sonhava com isso, pois para ele a vida que levava estava boa demais. Mas não teve saída. Alguns amigos bem intencionados decidiram dar uma forcinha e aproximar o casal. Hoje em dia, está difícil conhecer parceiros contando apenas com os auspícios da natureza. Ela não se agüentava de tanta felicidade. Fazia alguns dias que o seu humor oscilava entre angústia e euforia, preparando-se para a chegada dele. Dava a impressão que estava mais bonita, mais viçosa e vistosa. Passava horas inquieta, indo de um lado para o outro, cantando nervosamente, simplesmente para disfarçar seu estado. Ele, como já disse, estava na dele, curtindo sua vida de solteiro. Sem grandes emoções, estava vivendo tranquilo e em paz com a sua natureza. Cantava para passar o tempo, alegrava-se com o irrisório fato de estar vivo. Distraía-se comendo comidinhas gostosas, bebendo água fresca, pois não era adepto às bebidas alcoólicas. Levava o dia a exibir-se para todas aquelas que estivessem disponíveis e, claro, que ele achasse interessante, mas sem comprometimento maior. Até o dia de hoje...
O encontro se deu. Ela, histérica, chegou a dar uns gritinhos de excitação quando o viu. Ele, meio apavorado, mas tentando disfarçar, cantava agora de nervoso. Esses sentimentos incoercíveis prevaleceram no primeiro momento. Um tentando fazer a corte ao outro, num misto de estranheza e constrangimento. Porém, em não muito tempo os dois já haviam mudado seus comportamentos: ambos se calaram, quase nem se olhavam mais. Não existia mais a excitação de outrora. Os movimentos frenéticos de lá prá cá, assovios e cantos, de alegria ou nervoso, desvaneceram-se. O encanto se foi, na mesma velocidade de um supersônico. Coisa natural da vida. Mas não pensem que isto se deu por que ela é uma canária belga e ele um pintassilgo. Não, não é isso. Todo esse imbróglio é indiscutivelmente por que ela é uma fêmea e ele um macho.