terça-feira, 6 de julho de 2010

Obrigada, hoje é segunda feira



Tenho ouvido e lido constantemente críticas à sociedade contemporânea. Concordo com a grande maioria delas. De fato, existe tudo em excesso, a tecnologia, as ciências, o consumismo desenfreado, a falta de educação de crianças, adultos e velhinhos; isso sem falar na destituição do silêncio, do simples e do natural. Ainda assim, numa noite dessas, tive de rever meus conceitos. Era uma segunda-feira, umas nove e meia da noite e acabava de sair do consultório. Confesso que já estava bem cansada daquele dia, mas imperava um calor araçatubense na nossa capital que era mais do que um convite a desviar do caminho de casa. A noite inspirava cerveja e conversa fiada. Mas, pera lá, era uma segunda-feira. Outra coisa, encontrar algum amigo que estivesse disposto e disponível em plena segunda-feira seria mais que um desafio. Liguei, um pouco encabulada, para a primeira amiga que pressupus estar nestas condições e obtive um não bem redondo, justificado pela simples máxima de que era uma segunda-feira. Passado o susto da descompostura, um pouco ressabiada, tentei mais uma, desta vez minha vizinha que mora do outro lado da rua. Ainda ao telefone com ela, ouvi barulho de outras vozes. Não cheguei nem a perguntar. Ela, à queima roupa, disse: “oi, vem para cá, estamos eu e mais dois amigos batendo papo e tomando cerveja.” Vale ressaltar que a dona da casa tinha trabalhado o dia inteiro, pego um trânsito daqueles, também estava cansada e blá, blá, blá... A moça que já estava lá, assim como nós duas, havia dado um duro danado naquele dia, como costuma fazer em praticamente todos os dias. O terceiro, único homem da história, cirurgião plástico. Ele, no decorrer daquela segunda-feira, havia redesenhado alguns de seus pacientes, transitado pelas mesmas vias infernais e estava visivelmente nocauteado, tal qual seu último cliente vaidoso, que aquelas alturas, ainda estava sob os efeitos da anestesia. Acontece que, nos tempos modernos, o desejo de um encontro para além do ninho familiar não é coisa de outro mundo. A possibilidade de conversar com os amigos se sobrepõe ao cansaço e às obrigações do dia seguinte - bom lembrar que no outro dia todos teriam um dia cansativo novamente. Enfim, os amigos encontram-se. Cada um conta um pouco ou muito de si. O papo vai rolando no calor da hora, sem censura, numa terna cumplicidade. Todos dividem o mesmo anseio: quebrar a rotina, esquecer que aquela segunda-feira era uma segunda-feira, que o trânsito de São Paulo castiga, que o trabalho, em alguns dias, é um pé no saco, que as paredes do quarto continuam lá, estáveis e previsíveis e que nada significativamente iria mudar, com ou sem cerveja. Foi muito bom corromper velhos hábitos que insistem em operar sobre nós. Saí de lá tão melhor, que resolvi escrever e agradecer ao mundo moderno por estes encontros não planejados, que até bem pouco tempo só teriam lugar entre os boêmios de carteirinha, os milionários excêntricos ou os marginalizados.

4 comentários:

  1. Olha,lendo esta "crônica do cotidiano" , penso que pode estar surgindo uma nova escritora que nos brinda com pequenos acontecimentos do dia a dia nos quais não temos sensibilidade para colocar desta forma.
    Parabéns !
    José Antônio Q. Ferreira

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  2. Foi incrível ler sua cronica e relembrar aquele encontro, realmente não planejado mas deliciosamente compartilhado com pessoas muito queridas em minha vida. Voce é uma delas amiga. Beijo grande e parabéns!

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  3. "Nunca vi boa amizade nascer em leiteria."
    (Vinícius de Moraes).

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