sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Voltar para casa


Acho que viajar, no fundo, é sempre um desejo de des - identificaçao. Viajar é esquecer-se de si, é abandonar-se. Quando viajo não quero me levar junto. Anseio por uma metamorfose. Busco no anonimato uma entrega, uma oportunidade única de ter minha identidade dada somente pelo número do passaporte. Observo os rostos estranhos que vejo passando nas ruas desconhecidas. Adoro me perder em meio às variadas construções, nos desvios e desvãos das palavras pronunciadas em línguas maternas que não a minha. O “unheimlich” - texto de Freud, que quer dizer “estranhamente familiar" - que mora dentro de mim fica ávido para se praticar. Um distanciamento de hábitos e horários, uma ousadia do paladar em buscar outros sabores e texturas. O velho cansado que habita em nós vê-se convocado a se retirar. Caminhamos sem perceber as distâncias percorridas, pois quem decide a hora de parar são os olhos. Há um tempo de suspensão das questões cotidianas, burocráticas e protocolares. Há um certo suspense em torno de cada amanhecer. Rejuvenesce-se durante uma viagem. Olhos opacos ganham novo brilho. É tempo de beber de outras fontes, experimentar se deixar ser uma página em branco levada pelo vento. Preencher a vida com uma história outra, que não aquela já tão batida.
A questão é voltar para casa. Temos a sensação que se havia incorporado um santo dentro da gente e que, num só golpe, abandona subitamente o corpo. É isso mesmo, como se corpo e alma se separassem por um tempo e tivessem que tomar fôlego para se reencontrar.
Não se sabe onde se está, que horas são, por onde recomeçar. A mala ainda fechada no meio da sala, um cansaço de anteontem, uma estranheza da casa, da cama, do quadro na parede. Quer-se a suspensão de volta, aquele estado de alienação que nos deixou meio entorpecidos durante a viagem. Tudo isso ficou para trás, é só colocar os pés em casa e dá-lhe realidade! Trabalho, contas para pagar, geladeira vazia, secretária eletrônica cheia, horário do relógio que não bate com o do teu corpo, teu corpo que não cabe dentro dele próprio; sem falar nos bichos que sentem tudo isso às avessas, sem terem colocado seus focinhos para fora, exigem um dono novinho em folha.
A aventura da viagem começa, de fato, agora.

4 comentários:

  1. Lindo! Perfeito. Qualquer coisa escrita ou dita estará aquém, muito aquém da plenitude desse texto.
    Como coube tanta subjetividade dentro da objetividade desse texto tão preciso?
    Se havia dúvida, agora não há mais: você é uma grande e generosa escritora.
    A prova de que é possível ser absoluta em duas profissões tão responsavelmente representadas aqui. Pela professora de idiomas e por quem já nasceu psicanalista.
    Dani Sabino

    ResponderExcluir
  2. Amiguinha, generosa é você! Sempre foi você. Beijo
    Marcia

    ResponderExcluir