quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Pessoa e Lacan

Pessoa não economizou em adjetivos pejorativos ao depreciar um humano, nesse caso ele próprio. Em "Poema em Linha Reta" o poeta se apresenta como um porco, vil, mesquinho, ridículo, parasita; enquanto qualquer um que não seja ele próprio, um ideal de virtude. Totalmente maniqueísta sua forma de ver a si e a alteridade, concordo. Mas, prá bem da verdade, não é assim que nos sentimos toda vez que refletimos sobre nossa condição? Se pensarmos que sobrevivemos ao nosso nascimento somente por que um outro se fez presente e permitiu que sobrevivêssemos, compreenderemos por que raios carregamos essa sensação de precariedade e insuficiência para sempre, ainda que, ao longo da vida, nos propomos a colecionar credenciais, medalhinhas e trofeuzinhos, para nos convencer do contrário. O aforismo máximo de Lacan, que delineia sua teoria, fala disso: "o desejo é sempre o desejo do desejo do Outro".
Vamos ao poema.


"Poema em Linha Reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza."

Álvaro de Campos
Extraído de "Fernando Pessoa - Obras Poéticas", edição de 1972

Um comentário:

  1. A ele faria bem ficar um só dia em meu lugar, ouvindo as confissões de consultório...

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