quarta-feira, 3 de novembro de 2010
República de novo
Assisti na última semana ao filme “Como esquecer”, cuja protagonista é Ana Paula Arósio no papel de Júlia, uma professora de pós-graduação de Literatura Inglesa que, recém separada de um casamento que durou dez anos, depara-se com sua nova realidade. Não é simplesmente a derrota afetiva que a desespera. Como se não bastasse, é preciso lidar também com toda a parte prática e burocrática que uma separação inflige. Nos momentos em que cada toque do telefone ou da campainha desperta na catedrática uma excitação desenfreada e infantil, que mais beira um clichê novelesco que qualquer outra coisa, não é do retorno da amada que a perturbação do silêncio trata. Quando batem a sua porta, não é o amor de sua vida que Júlia vê logo ao abri-la. É a proprietária do apartamento requerendo o aluguel atrasado e lembrando-a que o contrato estava no nome daquela que a abandonou, inclusive o fiador também era um conhecido da moça. Num outro momento, o toque do telefone faz com que o corpo todo da professora sofra um impiedoso sobressalto. Mas, de novo, não é a ex-companheira arrependida, confessando que ainda a ama que está do outro lado da linha. Não é mesmo. É o gerente do banco dizendo que sua conta conjunta sofreu o mesmo que sua relação: foi separada à revelia. Com isso, mais golpes de pura realidade. Seu limite no cheque especial e no cartão de crédito foi cortado à metade e, o pior de tudo nessas horas, por mais ridículo que pareça, para Júlia o que mais dói é que outro vínculo se desfaz. Aqui nesse ponto, os títulos de mestre, doutora, pós-doutora não têm o poder de dar lenitivo ao pesar dos que foram abandonados, por não outra pessoa, senão por aquela mesma por quem um dia foram também amados. Como se tratava de uma relação homossexual, nem daquele dispositivo de vingança ancestral – pedir uma pensão alimentícia – nossa professora pode fazer uso. Sem dinheiro para manter o padrão de vida que levava na época do casamento, sem vontade de superar seu sofrimento, ao contrário, cultuando um desejo mórbido de se enterrar viva junto com a morte do amor, Júlia recebe a seguinte proposta de seu melhor amigo: voltar a morar em uma república. A princípio, ela rejeita categoricamente a idéia. Mas como a indiferença a toma por inteiro, Júlia muda-se com seu amigo e mais uma amiga do amigo para uma casa velha no subúrbio. República de novo naquela altura da vida? Pois é. Aquilo que se apresentava a Júlia muito mais como o triunfo do pior sobre o ruim, no final, foi o que a salvou do calvário que era ela mesma. O convívio com gente diferente dela, vivenciando igualmente desconsolados desencontros amorosos, mas com roupagens distintas, foi o corte que Júlia precisava. Ser desafiada por pessoas, sem quase nenhuma sutileza ou panacéia, a ver que o mundo não gira em torno do seu umbigo, foi a forma mais eficiente de tirar Júlia de seu estado melancólico. Descobrir-se capaz de aturar e acatar diferenças, de poder ainda dizer algo que conforte alguém, de aumentar, mesmo que milimetricamente, seu grau de tolerância, tudo isso a socorreu de um estado narcísico pernicioso, onde as frustrações amorosas funcionam somente como uma justificativa para que se possa operar nossos estágios mais regredidos e solipsistas de um ego infantil e petulante. Voltar a dividir a casa, os pertences e a vida, num momento tardio da vida, pode representar uma visita às esperanças juvenis dos sonhos de felicidade. O que não nos imuniza dos fantasmas do passado, pois como a própria Júlia questiona quando seu amigo a critica por viver com os fantasmas ao invés de encarar a realidade: “existe algo mais real que um fantasma?” Não, sabemos que não existe. Para além do bem e do mal, são eles os maestros da vida real.
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Os fantasmas das relações vividas existem a despeito de nossas emoções...mesmo quando se tem a sensação de que as angustias de um relacionamento desfeito foram superadas. Esses fantasmas poderão estar presentes durante dias, meses, até anos, mas haverá um momento em que eles não mais terão a mesma força, importancia e intensidade..."tem que haver esse momento"!
ResponderExcluirBeijos e parabens pela analise,
O pior fantasma é aquele que você já enterrou, mas ele insiste em te atormentar. Por isso não acredito em casas mal assombradas, só em casas BEM assombradas... Parabéns pelo texto, um beijo, Ane.
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