quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Eutanásia assistida


Nos anos de 2003 e 2004, de repente, o tema da eutanásia foi parar nas telas dos cinemas. Assistimos a, pelo menos, três grandes filmes que abordaram, entre outras questões, o exercício da hierarquia do homem sobre a sua própria morte e as vicissitudes do ato em si.
Em “As Invasões Bárbaras” (Les Invasions Barbares, produção franco-canadense de Denys Arcand), o professor de filosofia, Rémy, que era jovem e sadio em “O Declínio do Império Americano”, envelheceu e adoeceu. Nessa história, a morte é convidada ilustre, pois vem para matar alguém que esteve vivo até seu último suspiro. Morreu da mesma maneira que escolheu viver, perto de seus amigos, antigas amantes, ex-mulher e do filho, com quem não tinha até então qualquer afinidade além do laço de sangue. Elegeu como cenário para acabar com sua vida a casa de campo onde costumava dividir com essas mesmas pessoas reflexões filosóficas, boas conversas e bons vinhos, enquanto protagonizava aventuras amorosas juvenis. Uma morte bem-vinda após uma vida bem vivida. Winnicott dissera uma vez que seu maior desejo é que estivesse bem vivo na hora de sua morte. Com o nosso professor de filosofia parece que se deu assim.
Já no espanhol “Mar Adentro”, do chileno Alejandro Amenábar, Javier Bardem se supera ao interpretar Ramón Sampedro, que não é um personagem fictício. Ramón foi um marinheiro que, aos vinte e seis anos, após mergulhar no raso, sofreu uma fratura que o deixou tetraplégico. Aqui é preciso encarnar aquele que existiu em carne e osso. Passados vinte e seis anos do acidente, Ramón, então com cinquenta e dois anos, não estava mais vivo na hora de sua morte. Desde que se tornou prisioneiro de uma cama, de onde só via o mundo através do quadrado de uma janela, Ramón não concebia o fenômeno de estar vivo como vida. O tempo que passava acordado, restrito as quatro paredes do quarto, era de uma angústia desesperadora. Somente em seus sonhos e devaneios conseguia extrair sensações que poderiam ser tomadas como vida. Como não era capaz de dar cabo de sua vida sem ajuda alheia, fez um apelo judicial para que a eutanásia lhe fosse concedida. Levou anos esperando que a justiça deferisse seu pedido, o que nunca aconteceu. Ao contrário, foi-lhe enviado a contragosto a visita de um cardeal para tentar dissuadi-lo da idéia. Por fim, contou com a ajuda de uma curiosa, a doce Rosa, que ao assistir a seu apelo pela televisão, resolveu visitá-lo imbuída do desejo de fazê-lo mudar a percepção que tinha sobre a sua vida.
Todo o grande nó dessa questão, é que Ramón - ao contrário de outros a quem a eutanásia é realizada sem maiores dilemas, pois já perderam há tempo o contato com o mundo externo - está lúcido, muito lúcido, demasiadamente lúcido. Inteligente, irônico, espirituoso, gentil, afetivo, sem contar com o olhar... Olhar profundo e angustiado, que te faz cúmplice num piscar de olhos. Convivendo com ele, as pessoas que o mantinham vivo encontravam sentido para suas próprias vidas. Na verdade, caso ele viesse a morrer, seus zelosos cuidadores perderiam muito mais do que seu paciente. No final, é a recém conhecida Rosa que o ajuda a realizar o ato de misericórdia que faria estancar sua agonia.
No norte-americano “Menina de Ouro” (Million Dollar Baby, superprodução de Clint Eastwood) acontece o mesmo. A diferença é que se trata de obra de ficção e a protagonista é bem mais jovem. Além disso, é um filme hollywoodiano, com seus efeitos e defeitos. A menina, Maggie Fitzgerald, protagonizada por Hilary Swank, é aprendiz de um treinador de boxe, Don, interpretado pelo próprio Clint. Após investimento intenso para aprender a lutar e convencer seu mestre de que era competente, Maggie torna-se uma das favoritas na luta. Aí chega o clímax do filme, uma luta valendo um milhão de dólares, que salvaria Maggie das garras de sua vil família. Só que ao invés de receber dólares, Maggie recebe um golpe certeiro de sua oponente e fica condenada a uma cama hospitalar, condição irreversível. Maggie, pede, implora, suplica a seu mestre Don, agora seu melhor amigo, que a ajude a morrer. Da mesma forma que Ramón, Maggie não suportava permanecer viva naquele estado.
O que há em comum nessas histórias? A eutanásia? Não. É a própria morte, clandestina ou não, pouco importa. É que a morte, ainda que seja desejada como um avatar da liberdade em seu estado mais puro, só é percebida como perda, e a isso já nascemos condenados.
Eutanásia, deriva do grego “euthanatos”, onde “eu” significa “bom” e “thanatos”, “morte”. Cometer a eutanásia é presentear o morrente com uma boa morte. Então, considerando a etimologia da palavra eutanásia, não faz sentido associá-la a um bálsamo, pois o instante da morte é sempre igual, tanto faz se vai se morrer de morte matada ou morrida. Seguindo esse fio condutor, a palavra que melhor se aplicaria para dar cabo a uma vida de dor e desespero, seria alguma que representasse “bom fim de vida”, aliviando e abreviando a vida de quem não deseja mais estar vivo.
O ato da morte deve ser análogo à suavidade e rapidez com que os cílios batem na pálpebra. Assim gostaria eu que fosse. Estivesse eu certa, não haveria mais sentido em se colocar em questão temas como a eutanásia ou suicídio.
O limiar entre o mal-estar de se estar vivo e o alívio de se estar morto, o que é um átimo, toma-nos de pavor e assombro. Quando falamos em sacrificar um animal para livrá-lo do sofrimento e deixá-lo morrer com dignidade, estamos somente justificando o nosso medo ancestral de lidar com a hora da morte. Não existe dignidade na morte, da mesma forma que não existe na vida. Acreditar que manter em rédea curta o domínio sobre a nossa morte paliará a nossa dor de existir... só mesmo nos filmes.

2 comentários:

  1. Esse texto está difícil de comentar. Nem sempre podemos expôr abertamente o que pensamos. Falar em eutanásia... ou morte, seja boa ou ruim... suicídio... desconforto em viver? já vi pessoas desejando a morte. Já vi pessoas tirando a própria vida. Pena não conseguir esquecer os absurdos da existência. Na verdade, essas pessoas não pediram para nascer.

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  2. Adorei o texto. Gosto de pensar as avessas, mas talvez Saramago tenha pensado por mim. beijos

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