segunda-feira, 15 de novembro de 2010

O AMANTE - Dir. Francisco Medeiros (2010), do escritor e dramaturgo Harold Pinter - prêmio Nobel de Literatura em 2005


Sarah e Richard, interpretados magistralmente por Paula Burlamaqui e Daniel Alvim, dão vida a um clássico casal inglês que mora em uma casa no subúrbio de Londres nos anos 60. A história não poderia ser mais antiga e também mais atual. O casal para manter-se interessado um no outro, precisa ter um outro, ou outros, quaisquer outros que os façam esquecer temporariamente quem são e para quem são. Que todos os humanos desejam para além de um objeto exclusivo não é novidade. Ao contrário, só nos constituímos pela constante e impiedosa ameaça de que não somos o “tudo enfim” do outro. O terror de ser abandonado nos persegue desde os tempos mais remotos. Na verdade, desde quando, ainda bebês, percebemos que a mãe tem olhos para outros sítios além de nós. O mais insólito disso é que essa percepção trágica é, antes de tudo, estruturante. Para a psicanálise, é sobre essa premissa que se funda e se fundamenta toda a sua teoria. Porém, quando se trata da peça, o furo é mais embaixo. O conhecimento psicanalítico estofado com seus conceitos de castração, desejo, fixação, fetiche, não se prestam a dar nenhum conforto aos que escutam o delicado e denso duelo verbal entre Sarah e Richard, ao mesmo tempo em que, como bons "voyeurs", assistem à entrega das personagens às cenas de amor apaixonado. Do começo ao fim, temos a sensação de que ao deixarmos o teatro, retornaremos a nossa rotina da mesma forma que a deixamos. Doce ilusão. Tudo é muito perturbador: as litanias, os silêncios, as mordaças simbólicas, os gritos, as derrisões, os olhares, a crueza da luz e a lucidez das falas, sem falar na abstinência de sonhos – diferente, cabe ressaltar aqui, de fantasias – e o inefável. É, o inefável. É isso o que mais inquieta. Por mais que Sarah e Richard desnudem-se em confissões, resta algo de indizível, de inconfessável, que nem eles desconfiam do que se trata, mas que sabem que falta. A liberdade de poder expressar tudo o que se consegue não sustenta o delírio amoroso. Não há como passar incólume à dinâmica inconsciente que rege a relação de Sarah e Richard e que escapa a qualquer modo de apreensão. No entanto, tamanha é a beleza dos atores que, ingenuamente em vários momentos, pegamo-nos deslumbrados, capturados pela sensualidade, na medida certa, que orbita sobre o casal. Digo ingenuamente porque o texto é vertiginoso, desassossega, convoca. Mas seria apenas mais um texto que alude às delícias e ao deletério de um casamento, não fosse a sintonia visceral entre Daniel e Paula. Fico me perguntando como fazem para extrair de suas entranhas a presença daquelas personagens-entidades. Richard e Sarah somos todos nós, e o incômodo advém da pobreza de recursos que percebemos possuir para dar conta de uma relação amorosa, ao testemunhar, não sem comiseração, o despropósito que é devotar-se ao amor e buscar através dele, e só dele, uma gratificação que se contraponha ao pavor ancestral do desamparo existencial.
Bravo!

“No divã, como no amor, para mim o que conta é o que não posso dizer.” Jean-Claude Lavie, psicanalista

4 comentários:

  1. O texto de Pinter explora e expõe de modo brilhante a fragilidade do discurso amoroso, seus jogos de sedução e poder. Falar sobre os bastidores dos laços conjugais sem parecer piegas não é fácil e quando autores/atores conseguem dar credibilidade aos jogos solitários, efêmeros e repetitivos configurados nesses laços, permitem que se compreenda um pouco a natureza humana.
    Parabéns pela análise.
    Bjs.

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  2. Não li Pinter nem vi a peça, mas depois de ler teu texto fiquei curiosa para ver. Um beijo

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  3. Ma, amei sua analise. É perfeita! Parabéns pelo texto.
    A forma com que a relação entre Sarah e Richard foi retratada foi profundamente convidativa a uma reflexão sobre o quanto arriscamos ao ousar em nossas relações, e tambem como os personagens que secretamente vivemos em nosso cotidiano podem se tornar reais, e ao mesmo tempo antagonicos.
    Na peça, o amor e a paixão se fundem num extase continuo de dor e prazer, expondo duas almas em desalinho, mas alimentadas pelo vicio da gratificação.
    A peça é fantástica e as interpretações da Paula e do Daniel foram deliciosas.
    Beijos,

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  4. Não vi a peça. Ainda. Mas arrisco falar sobre esses manjados e inadministráveis conflitos que norteiam e desnorteiam os casais desde que o mundo é mundo. Com toda a liberdade ou nenhuma, não dizemos tudo simplesmente porque não sabemos que tudo é esse! A inquietude é pessoal e intransferível. Se esforça em manter um movimento constante brincando com nossas certezas absolutas, bagunçando as definições mais definitivas que temos, nos obrigando a refazer, reconstruir, reorganizar o que parecia tão prontinho... Dá prá viver com esse outro aí, dentro de você, dizendo que "não há plenitude, meu amor!"? Não mesmo. Transferir prá quem está mais perto e esperar que ele seja a tal tampinha da laranja (não a metade, a tampinha mesmo) é o mais velho, prímário e cruel recurso que adotamos para justificar a falta de sentido do sentido que buscamos. Pobre do outro, que paga a conta do que não consumiu. Pobres de nós, tão imperfeitos, que insistimos no encontro da perfeição, do concluído, do "Fim", prá então deixar a vida começar...

    Não vi a peça. Ainda. Mas vi a Paula Burlamaqui no Jô e fiquei ainda mais encantada do que já era com essa atriz que chegou à TV madura, pronta ocupando todos os espaços destinados às suas personagens, ainda que pequenas para seu talento e generosidade. Até então, Burlamaqui era amiga de Lavigne que era mulher de Caetano. Esse era seu currículo, pelo menos nas notas e notícias sobre o casal frisson da época e sua amiga inseparável. Quanta bobagem. Quanta futilidade.
    Aí ela chega, discreta, comovida e comprometida e ocupa elegantemente o que lhe é de direito, sem abusar nem desperdiçar. Essa sim, deveria ser a notícia. Esse sim, é o fato.

    Não vi a peça. Ainda...

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