segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Amizade X romance


Há muito tempo, bem antes de alguns pensadores contemporâneos profetizarem sobre o naufrágio das relações familiares e o fortalecimento das relações de amizade, já acreditava intuitivamente nessa proposição.
Simultâneo a isso, também deixei de acreditar nas relações alicerçadas nos pilares do amor romântico. Prefiro viver de desilusões. As novelas e filmes que retratam o discurso de pombinhos apaixonados, recheados de diálogos melados, não ganham minha audiência. Na verdade, acho as cenas apenas engraçadas.
Sem falar nas vezes em que escuto relatos de sujeitos que se dizem apaixonados. O repertório é pobre e nada original. Alguns, orgulhosamente espalham aos quatro ventos, que acabaram de conhecer alguém e, numa fração de horas, a conversa foi tão fácil e familiar que o casal virou cúmplice em inúmeras questões. Às vezes, o fenômeno se dá apenas no relâmpago de um olhar. Esses alienados investidores causam-me senão pena. Mas, não pensem que sou uma destruidora de ilusões. Ouço tudo atentamente e apenas faço, eventualmente, algumas perguntas simples.
Outro dia, alguém me disse que o seu parceiro era tão especial e combinava tanto com ela, que era capaz de ler seus pensamentos. Cheguei a me arrepiar. Quem, em sã consciência, acha bom que outra pessoa, mesmo que seja na África, tenha o topete de ler seus pensamentos? Nem a Madre Tereza de Calcutá iria gostar disso. Aliás, se alguém tivesse essa habilidade, provavelmente ela não seria mais a Madre Tereza de Calcutá.
Lacan, na maioria das vezes, mal interpretado, afirma: “não há relação sexual”. O que ele quer dizer com esta afirmação? Que o inconsciente não reconhece a diferença sexual via anatomia, os órgãos genitais não podem determinar quem é homem e quem é mulher. A diferenciação sexual se dá pelo lugar que cada um ocupa no inconsciente. Assim, não há “o” encontro, o encaixe que fará de dois sujeitos um. Lacan cansa de repetir: não é possível de dois fazer um. Essa constatação é triste, refuta os nossos sonhos juvenis de completude. Esqueça aquele papo da metade da laranja, ou da cara metade, ou ainda, da alma gêmea. Tudo engodo, mentira, logro. O amor romântico foi criado para tamponar esse buraco que é a inexistência de relação sexual. Assim, a reprodução está garantida. Sem o auto-engano do amor, a raça humana estaria em processo de extinção.
Com ou sem teoria, nada disso é novidade. Basta alguma lucidez e a desconfiança desconcertante dos amores à primeira vista, dos romances impossíveis, das ilusões baratas, para você desejar investir nos vínculos de amizade mais do que nos velhos clichês dos romances com prazo de validade expirado ainda antes de serem consumidos e consumados.
Não quero dizer com isso, que não é possível estabelecer boas relações familiares ou conjugais. Longe disso. É possível que se tenha amigos que sejam também seus irmãos. Que possa haver trocas fecundas e encontros saudáveis entre os consangüíneos. Mas, isso não é uma prerrogativa e, muito menos, uma regra.
Também acredito que duas pessoas possam viver como um casal por muitos anos e sentirem-se bem na relação, desde que o pilar da comunhão seja a amizade e não o tal do amor romântico.
O sujeito contemporâneo, esse que somos nós agora, está acabando, fechando um ciclo, bem como a idéia das famílias nucleares. Há quem defenda as relações de amizade como as únicas consistentes e passíveis de serem bem sucedidas, uma vez que são estabelecidas a partir de uma verdade soberana: amigo é plural. Nas amizades não há a premissa da exclusividade, como nos romances. Pode-se viver com a diversidade dos amigos. Há aqueles que gostam de partilhar com você um papo sério, outros que gostam de sair com você, outros que nem têm muito a ver, mas são agradáveis e te fazem rir, ainda há outros que são exatamente o que você não é, que veem o que você jamais veria, e isso é muito instigante. Há os infantis, os chatos, os folgados, os mimados. Viva a singularidade!
De fato, é bem provável que as novas famílias não sejam compostas, exclusivamente, por pessoas com laços de sangue. Eu torço por isso.

6 comentários:

  1. Gostaria de saber em qual categoria me encaixo: infantil, chata, folgada, nada a ver, preguiçosa..... vou analisar as opções, talvez eu seja um mix de todas.Tu és uma chata, mas eu te adoro!!!!

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  2. Surpresa boa!
    Nossa amizade foi amor à primeira vista, em Cuiabá, lembra? Depois de muitas partidas de buraco, noites em claro, algumas garrafas de vinho, Chico Buarque, Djavan, Pelle o conquistador, sua mãe, minha mãe, nossas histórias, lágrimas que viravam piada, conforto seguro em dores profundas, amigos compatilhados, segredos revelados, coisas difíceis de ouvir que precisavam ser ditas, cumplicidade. Crises. Lá se vão 20 anos... hoje, preservados o prazer da convivência que ainda manifesta saudade em dias sem contato e a desconhecida, até então, segurança garantida pela certeza de ter prá onde ir, quando não damos conta da gente. Amor à primeira vista que certamente vai durar toda a vida. Amizade é isso: um grande amor, sem sexo, no prazer da convivência pura e simples.
    Que venham mais 40 anos!
    Beijos na irmã que eu escolhi.

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  3. No livro "Amizade e estética da existência em Foucault", Franscisco Ortega descreve a amizade como um convite à experimentação de novas formas de vida e comunidade, uma tentativa de pensar e repensar as formas de relacionamento social que, segundo ele, são poucas e simplificadas. Parece que o convite tem sido aceito e os resultados estão aí para quem quiser ver e viver, há uma nova organização de vida social: as relações de amizade. Essas, ao contrário das relações intensas de submissão, dominação ou enfrentamento, são relações intensas de partilha e de cumplicidade. Abraços aos meus queridos amigos e a ti que poderia ser só minha irmã, mas é muito mais do que isto, é a amiga que escolhi.

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  4. Salve! Quantas idéias pululantes! Desde a década de 50 estamos fechando o ciclo "papai trabalha, mamãe cozinha e os filhinhos batem palmas", as relações realmente estão mudando - aliás como sempre mudaram ao longo da história, como uma onda no mar, dito por Nietzsche. Apenas um reparo, o amor romântico não deve ser desprezado pois foi a semente da cultura européia, quando no Séc. XI os trovadores popularizaram o conceito que levou à recusa dos casamentos pré-arranjados pelas famílias em pról da escolha individual, ou seja, o indivíduo antes da sociedade - e da Igreja - claro que um tempo depois foram todos destruídos a mando dos clérigos, mas aí a semente já brotara, veio a reforma de Lutero, e o Ocidente passou a valorizar o conceito de "Self" e sem o que não haveriam Lacans, Freuds, Marxes, Darwins, Robespierres, Foucaults etc. Logo, tudo tem seu momento e na vida tudo é passageiro (menos motorista e cobrador... ahahahah!!!). O problema surge quando o Amor Romântico é castrado de seu propósito, aí sobre só a melação mesmo. Não se esqueça que a castração e a melação são as bases das sociedades das abelhas, formigas e cupins... ao tirar do Homem seu "Self" o que sobra é uma rês no rebanho... como diria Joseph Campbell: "follow your bliss!".

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  5. Ane, tu te encaixas em vários modelitos, mas a tua marca registrada é me fazer rir. Sinta-se muito elogiada, pois são raras as pessoas que conseguem me arrancar um riso. Tu és uma observadora nata e és capaz de perceber os lances que podem se tornar engraçados no tempo certo. É uma questão de "timing", e isso é muito sutil e preciso.
    Beijos

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  6. Puxa vida, eu estou me achando depois dessa, obrigada Marcia, Esse mania de fazer rir vem desde pequena, é o meu meio de defesa, quando as coisas ficavam difíceis na minha casa, eu fantasiava para não sofrer.Lembra do filme: A vida é Bela? Pois é isso.
    Nunca esqueço que você dizia: Ane como você é espirituosa e eu respondia, espiritualista Marcia.
    Espero que eu viva bastante para pelo menos tirar um sorriso ou gargalhada de vez em quando dessa pessoa tão séria que és. beijos mil e até breve.

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