quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Mentes, eu minto, tu mentes...


As patologias psíquicas, sem sombra de dúvida, têm sofrido algumas transformações nas suas formas de manifestação. Porém, se observarmos bem, veremos que o repertório de sinais e sintomas que caracterizam as desordens e transtornos mentais não apresentam diferenças assim tão significativas a ponto de se pensar em outros tipos de tratamento ou outra nomeação. A exceção disso foi o Transtorno Bipolar, que antigamente era chamado de Psicose Maníaco-depressiva, que, diga-se de passagem, era uma nomenclatura mais fidedigna do que Transtorno Bipolar. No entanto, pelo preconceito que há em relação às psicoses, por injustamente estar erroneamente associada à psicopatia, decidiu-se retirar os dois palavrões da doença: psicose e maníaco. Nas psicoses, então, estas alterações de sintomas, são quase nulas, o que mudou foi o alcance das medicações na tentativa de domar os delírios. As depressões continuam do mesmo jeito, algumas nuances e sutilezas que dizem mais respeito ao singular do sujeito, do que ao fato de se tratar do tipo “a” ou “b” de depressão. As crises de ansiedade foram subdivididas em novas categorias e ganharam alguns nomes, como a tão popular Síndrome do Pânico. As fobias estão hoje catalogadas numa espécie de menu recreativo, tem para todas as idades, gostos e gozos. Em suma, normalmente o sofredor dessas enfermidades recebe algum diagnóstico que nomeie o seu padecimento e lhe é prescrito tratamento - via medicamentosa ou via prosa, ou ainda ambos.
Minha questão é que estas patologias já existem, já são tratadas há muito tempo e transtornam mais os seus proprietários do que aqueles que convivem com os transtornados. E, sobre esses, sempre vai haver alguém que se sinta outorgado a tomar conta do doente e fazê-lo ficar “bonzinho”.
Só que há patologias tão antigas quanto essas, mas que ainda não foram privilegiadas pelas ciências farmacológicas ou pela psicanálise. O que dizer dos mitômanos contumazes... há remédio para controlar essa compulsão? E dos incoerentes crônicos, que dizem uma coisa e fazem outra completamente oposta? Tem algum “sal” ou um santo “benzo” para interromper esse comportamento? E para aqueles que defendem a supremacia das suas ações, mas acovardam-se na hora de encarar as repercussões de seus atos? Por que essas doenças da mente não constam no DSM ou no CID10? Imagine só o diálogo entre psiquiatra e paciente:
Psiquiatra: - Pelo que está me contando, acho que o senhor sofre de incoerência crônica, vou checar...
Paciente: - Eu?
DSM - Critérios diagnósticos para Transtorno da Incoerência Crônica - TIC
1) Acreditar e reconhecer a importância dos tratamentos para a dor da alma, para os outros;
2) Xingar quem para em fila dupla e adorar parar nessa mesma fila;
3) Agredir subalternos e odiar pessoas arrogantes e prepotentes;
4) Transar com uma garota de 18 anos e não conceber a idéia de que sua filha de 20 faça sexo;
5) Achar o salário mínimo uma piada e pagar sua empregada com ele;
6) Entrar em confrontos políticos e justificar seu voto;
7) Pedir descontos ao comprar o trabalho de um artesão e pagar uma fortuna em uma roupa de grife, sem pedir nenhum desconto;
8) Elogiar a educação das pessoas que vivem no 1º mundo e fazer todo o tipo de grosseria no seu mundo.
Psiquiatra: - ...muito bem, o seu diagnóstico é TIC mesmo, vou prescrever um medicamento que está dando bons resultados em casos como o seu, e acredito que, principalmente, as outras pessoas serão beneficiadas com a sua melhora.
Será que algum dia, esses males infinitamente mais sérios e nocivos para quem convive com os que padecem deles ganharão um olhar?
Acho que estou precisando de um remedinho...

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

O Refúgio - Dir. François Ozon (França, 2009)


Título original homólogo ao adaptado - “Le Refuge”. É um filme superior, assim como “Cinco vezes amor”, mas nesse Ozon foi mais longe. Conseguiu reunir em torno do mesmo tema: a dor do vazio de existir versus hedonismo em sua plenitude - por tempo limitado, é claro -; mentes enfermas; a fragilidade e os descaminhos dos vínculos afetivos; a falta de signos de amor que possam fazer barreira ao terreno pantanoso que rege o desejo da maternidade e da paternidade.
Filme maduro e corajoso na abordagem de temas humanos, “demasiadamente humanos”. Previsível onde não há alternativa melhor e imprevisível naquilo que tange o fascínio apaixonado do diretor para compor e contar esse drama. Ozon tenta nada deixar passar, tanto que o filme parece mais longo do que na verdade é. Os diálogos são prosaicos, frios, sem afetação teatral, mas nenhum seria dispensável - às vezes cálidos e ternos, noutras sofridos e tensos. A fotografia é bela - o filme se passa em um lugar bucólico entre o verde do mato e o colorido das flores e a imensidão do mar.
Ela é linda; densa, sombria, opaca e sóbria, apesar de viciada em heroína. Ele é ainda mais lindo; doce, leve, versátil, mas complexo.
O filme é uma experiência feliz. Não dê ouvidos à pobreza da sinopse. Quem gosta de simplicidade e concisão, verá no filme o que foi dito até aqui. Quem prefere ir sempre um pouquinho além, mesmo que isso custe algumas rugas na testa, o filme trata de forma crua, nua e desiludida de redenção, naquilo que pode representar de bom e de ruim.

sábado, 18 de setembro de 2010

Solidão


Solidão.
Tema inesgotável. Condição de quem se sabe humano. No dicionário, a definição é pobre, simplista, concreta, unívoca – bem solitária. É na filosofia e nas artes que o termo ganha enlevo. Nessa seara, a solidão recebe a dose de abstração e subjetivação que merece. Basta pensarmos a diferença abissal que existe entre solidão para um bebê no berço e para um velho num asilo. Solidão entre ficar em casa, quieto, concentrado, lendo ou escrevendo – atividades em que a solidão é extremamente bem-vinda - e estar acamado num hospital. Nem Einstein daria conta de tanta relatividade... Por essa razão, pensadores e artistas conseguem apenas tangenciar o seu significado, sem nunca, nem de perto, abranger o seu pleno sentido. Existe um tipo de solidão, recurso sem igual para poetas e compositores, que está, inequivocamente, vinculada ao amor e aos seus amantes. É matéria-prima da melhor qualidade para promover inspiração. Ao contrário do que ingenuamente pensamos, esta é a menos nociva. É uma solidão preenchida de recordações, de figuras, palavras, músicas, filmes e, além disso, dá muito o que falar. Faz a festa de psicólogos e psiquiatras. O que parece ser um grande paradoxo, é que na verdade, este tipo específico de solidão funciona justamente como uma barreira contra a solidão. A pessoa está sempre acompanhada, seja pelos seus próprios pensamentos, sonhos, lágrimas, questionamentos... essa é suportável. Tão suportável, que é motivo de criação. Não faltam canções para saudar este sublime estado: mesmo o amor que não compensa é melhor que a solidão; canta Vinicius. Fundamental é mesmo o amor, é impossível ser feliz sozinho; diz seu parceirinho João Gilberto. Outros intitularam suas canções com ela, como Alceu Valença em Solidão – a solidão é fera, a solidão devora. Canta sua solidão igualmente em Na primeira manhã – Alceu, inspirado pela solidão de sua primeira noite logo após ser deixado pela mulher compôs esse lamento de abandono. Neruda poetiza: saudade é solidão acompanhada, é quando o amor ainda não foi embora, mas o amado já...
Porém, há alguns artistas e pensadores, mais sóbrios e solitários, que falam de outro tipo de solidão. A solidão que dói na alma e corrói os ossos. Aquele tipo, insubordinado e atroz, cujo caráter inominável, irrepresentável e incoercível mal cabe dentro da gente. Incomoda, faz barulho, desespera, aflige, alucina. Para esse tipo cruel de solidão, tivemos autores de inestimável lucidez, sabedoria e uma boa porção de tristeza e solitude. Raquel de Queiroz, com aquela maturidade de quem já nasceu velha, diz: a gente nasce e morre só. E talvez, por isso mesmo, que se precise tanto viver acompanhado. Clarice Lispector, com seu estado de alma sempre melancólico, conclui: e ninguém é eu, e ninguém é você. Esta é a verdadeira solidão. Mario Quintana, bem pessimista aqui, escreve: viajar é mudar o cenário da solidão.
No entanto, descobri algo interessante escrevendo esse texto. Os mais niilistas dos filósofos, são otimistas quanto à solidão. Schopenhauer afirma: solidão é a sorte de todos os espíritos excepcionais. Nietzsche: minha solidão não tem nada a ver com a presença ou ausência de pessoas... detesto quem me rouba a solidão, sem em troca me oferecer verdadeiramente companhia.
Dentre todas essas percepções, fico com a de Clarice.
Muito a refletir... Solidão? Aprecie com moderação.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Tempo, tempo, tempo, tempo


Ária, nome do novo CD de Djavan, é um dos mais belos e inspirados trabalhos do cantor e compositor. Com uma seleção de clássicos da MPB, Djavan, com aquele seu carisma e doçura tão Djavan, passeia por canções de Cartola, Edu e Chico, Vinicius e Tom, Beto Guedes, Gilberto Gil. Mas é na obra-prima de Caetano, a iluminada “Oração ao Tempo”, que Djavan comove. A música, na voz de Djavan é análoga à pureza de um limão e à solidão do espinho. Linda!
Parece pouco? Até poderia, só que com a sua inconfundível voz serena e delicada, ainda visita ritmos variados, vai de bolero, samba, blues... Tem até Luiz Gonzaga. Ele canta em português, inglês, espanhol e djavanês. Vale a pena ouvir. Se você gosta de Djavan, ouça Ária! Se não gosta, ainda há tempo, tempo, tempo, tempo.
O disco é uma bálsamo para os sentidos. Alivia e acalenta a alma.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Amizade X romance


Há muito tempo, bem antes de alguns pensadores contemporâneos profetizarem sobre o naufrágio das relações familiares e o fortalecimento das relações de amizade, já acreditava intuitivamente nessa proposição.
Simultâneo a isso, também deixei de acreditar nas relações alicerçadas nos pilares do amor romântico. Prefiro viver de desilusões. As novelas e filmes que retratam o discurso de pombinhos apaixonados, recheados de diálogos melados, não ganham minha audiência. Na verdade, acho as cenas apenas engraçadas.
Sem falar nas vezes em que escuto relatos de sujeitos que se dizem apaixonados. O repertório é pobre e nada original. Alguns, orgulhosamente espalham aos quatro ventos, que acabaram de conhecer alguém e, numa fração de horas, a conversa foi tão fácil e familiar que o casal virou cúmplice em inúmeras questões. Às vezes, o fenômeno se dá apenas no relâmpago de um olhar. Esses alienados investidores causam-me senão pena. Mas, não pensem que sou uma destruidora de ilusões. Ouço tudo atentamente e apenas faço, eventualmente, algumas perguntas simples.
Outro dia, alguém me disse que o seu parceiro era tão especial e combinava tanto com ela, que era capaz de ler seus pensamentos. Cheguei a me arrepiar. Quem, em sã consciência, acha bom que outra pessoa, mesmo que seja na África, tenha o topete de ler seus pensamentos? Nem a Madre Tereza de Calcutá iria gostar disso. Aliás, se alguém tivesse essa habilidade, provavelmente ela não seria mais a Madre Tereza de Calcutá.
Lacan, na maioria das vezes, mal interpretado, afirma: “não há relação sexual”. O que ele quer dizer com esta afirmação? Que o inconsciente não reconhece a diferença sexual via anatomia, os órgãos genitais não podem determinar quem é homem e quem é mulher. A diferenciação sexual se dá pelo lugar que cada um ocupa no inconsciente. Assim, não há “o” encontro, o encaixe que fará de dois sujeitos um. Lacan cansa de repetir: não é possível de dois fazer um. Essa constatação é triste, refuta os nossos sonhos juvenis de completude. Esqueça aquele papo da metade da laranja, ou da cara metade, ou ainda, da alma gêmea. Tudo engodo, mentira, logro. O amor romântico foi criado para tamponar esse buraco que é a inexistência de relação sexual. Assim, a reprodução está garantida. Sem o auto-engano do amor, a raça humana estaria em processo de extinção.
Com ou sem teoria, nada disso é novidade. Basta alguma lucidez e a desconfiança desconcertante dos amores à primeira vista, dos romances impossíveis, das ilusões baratas, para você desejar investir nos vínculos de amizade mais do que nos velhos clichês dos romances com prazo de validade expirado ainda antes de serem consumidos e consumados.
Não quero dizer com isso, que não é possível estabelecer boas relações familiares ou conjugais. Longe disso. É possível que se tenha amigos que sejam também seus irmãos. Que possa haver trocas fecundas e encontros saudáveis entre os consangüíneos. Mas, isso não é uma prerrogativa e, muito menos, uma regra.
Também acredito que duas pessoas possam viver como um casal por muitos anos e sentirem-se bem na relação, desde que o pilar da comunhão seja a amizade e não o tal do amor romântico.
O sujeito contemporâneo, esse que somos nós agora, está acabando, fechando um ciclo, bem como a idéia das famílias nucleares. Há quem defenda as relações de amizade como as únicas consistentes e passíveis de serem bem sucedidas, uma vez que são estabelecidas a partir de uma verdade soberana: amigo é plural. Nas amizades não há a premissa da exclusividade, como nos romances. Pode-se viver com a diversidade dos amigos. Há aqueles que gostam de partilhar com você um papo sério, outros que gostam de sair com você, outros que nem têm muito a ver, mas são agradáveis e te fazem rir, ainda há outros que são exatamente o que você não é, que veem o que você jamais veria, e isso é muito instigante. Há os infantis, os chatos, os folgados, os mimados. Viva a singularidade!
De fato, é bem provável que as novas famílias não sejam compostas, exclusivamente, por pessoas com laços de sangue. Eu torço por isso.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Foucault e liberdade


Na percepção do filósofo francês, liberdade está para autonomia, assim como escravidão está para dependência. Foucault, o mais contemporâneo dos filósofos, defende a ideia de que para sermos livres é preciso que saibamos cuidar de nós mesmos. O que vem a ser cuidar de si? A exemplo dos estóicos, cuidar de si é cultivar-se, é atender às necessidades do corpo, da mente e do espírito, sem incumbir o outro desse trabalho. Desde o nosso nascimento sabemos que é precisamente o outro quem nos possibilita a sobrevivência e o desenvolvimento. Até aqui tudo bem. Depois, esses cuidados são transpostos para as instituições, escolas, exércitos, igrejas, presídios, hospitais, que passam a ser responsáveis pela nossa manutenção no mundo. Vivemos sob a égide do paternalismo, exigimos cada vez mais que alguém cuide de nós. Esse modo de existir, parece à primeira vista, cômodo, prático e fácil. É assim que nos tornamos presos e presas. As psicoterapias cumprem bem esse papel ao tentar tomar as rédeas da vida do cliente, oferecendo-lhe colo e apoio. É simples culpar pai e mãe, chefes, governantes por tudo aquilo que nos contraria e nos frustra. Não gostamos de ser implicados em nossas escolhas e às repercussões que delas advêm. Concordo que é pesado e árduo tomar para si a responsabilidade sobre o nosso bem ou mal-estar. Foucault complementa dizendo que o ato de cuidar de si é o que nos habilitará a cuidar de um outro, na verdade, a ensinar ao outro como se cuidar. Assim deveria ser o sentido e a intenção de educar. Os métodos educacionais tradicionais fazem exatamente o oposto, bem como outras formas de inserção na sociedade contemporânea. Nossos jovens aprendem desde cedo a esperar do outro respostas para suas demandas e a culpá-lo pela falta de conquistas materiais e intelectuais. Não se importar com os porquês do que acontece a nossa volta é a forma mais cabal de se alienar dos cuidados consigo mesmo. As relações afetivas são o alvo mais certeiro desse tipo de isenção. A culpa é sempre do outro. Difícil sustentar a lâmina que fará o corte no vício da dependência. A decisão pela emancipação é solitária, sacrificada e ruidosa, mas acomodar-se no balanço instável do colinho sedutoramente macio e morno do outro levará, indubitavelmente, ao pior.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Museu da língua portuguesa

O poeta português e seus heterônimos. Seus heterônimos e seus pensamentos em verso e prosa. Era tanta inteligência, sensibilidade e beleza que Pessoa não cabia em uma só pessoa. Com uma escandalosa lucidez, ao mesmo tempo em que desfaz ilusões, constrói sonhos, sonhos capazes de fazer frente às mesmas desilusões. O homem no plural transcende tempo, gente e seus contextos. Na parede negra do museu um pedaço de “Ideias Políticas”, reflexão transcendental, que perturba e oblitera os pretensos pequenos saberes.

“Uma criatura de nervos modernos,
de inteligência sem cortinas,
de sensibilidade acordada,
tem a obrigação cerebral
de mudar de opinião e de certeza
várias vezes no mesmo dia.”