quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

"Já morei em tanta casa...


"Já morei em tanta casa... ... que nem me lembro mais”, cantava Renato Russo no início dos anos noventa. Na época, havia um par de anos que morava em São Paulo e já pensava que a música se aplicava a mim, pois pipocava de uma morada a outra com certa frequência. Meus endereços e números de telefone mudavam tanto que minha família já não usava mais caneta para anotá-los, adotaram o lápis e a borracha. Quase trinta anos depois, me dou conta de que naquela época habitei sim mais casas do que gostaria, mas lembrava de todas elas. Hoje, acredito que algumas devem ter sido sequestradas da memória ou estão lá nos recônditos do meu inconsciente. Entre essas, há uma em especial, que mesmo que quisesse esquecê-la, tem vida própria e volta-e-meia aparece para mim em forma de sonhos, fisgadas ou cheiros, esteja eu perto ou longe de seu sítio. É a casa onde passei minha infância. Esta casa de madeira, verde com janelas e portas marrons, impregnou-se em mim de uma forma, que nem os mais sofisticados achados da ciência são capazes de fazerem-na ir embora. Mas vamos ao presente. Por ora, habito uma casa antiga, com madeira pesada no chão, pé direito alto, moldura desenhada nas janelas e portas, paredes largas, estrutura de pedras. Alguém caminha na sala e um rangido invade a casa toda, como se a madeira emitisse suspiros distantes. Pelas portas e janelas poderia atravessar um gigante. A casa impõe-se à leveza embrutecida da modernidade. É como se a anciã ranzinza dissesse, não adianta me decorar com móveis e objetos de vanguarda, eu sou uma casa velha, amarelada pelo tempo, sóbria e endurecida pela história. No subsolo, há mais da mesma casa, um porão que mais parece uma masmorra, o tal do Keller. Acho que Keller foi uma das primeiras palavras no idioma que aprendi. Todas as casas antigas têm um e se fala dele com certa deferência. No meu livro de alemão tem um capítulo destinado a esse espaço. É uma espécie de entidade a ser respeitada. Para mim, era somente um lugar inóspito, úmido, sem aquecimento, janelas ou madeira cobrindo o chão. No meu entender, lá se colocavam coisas velhas e inúteis que os moradores queriam tirar de vista, mas que não queriam se desfazer de jeito nenhum. Mas também é um depósito de comida, muita comida e bebida. Sacos e mais sacos de batatas e cebolas, litros e mais litros de água e cerveja. Os mantimentos que ficam armazenados nesse porão dá a impressão de que para os alemães uma famigerada guerra está sempre à espreita. Mario Quintana dizia que as casas, assim como as pessoas, possuem alma. Acredito que sim, mas não todas. Não me lembro mais de todas as casas por onde passei, mas saberia reconhecer em quais habita uma alma. Aqui é uma delas. Ancestrais portas e janelas, surrado chão de tábuas que estremecem ao menor toque, paredes grossas e calejadas dialogam noite e dia.

Um comentário:

  1. Pois é, nossas mudanças eram sempre logisticamente complicadas, colocar tudo num Fiat 147 e quando tudo estava arrumado, mais uma mudança.Pelo menos você já sossegou nos ultimos anos.não mora mais na mala.Posso dizer com certeza que o teu lugar preferido no planeta inteiro, é a tua casa.Não existe hotel que a substitua.

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