terça-feira, 28 de dezembro de 2010
Ano velho
Há muito que o término de um ano e início de outro deixou de ser significativo para mim. Nada pessimista ou desesperançoso, ao contrário. Todas aquelas expectativas das quais o novo ano era tributário, provocavam uma falsa sensação de onipotência nos mortais. O ano que passou raramente era franqueado com elogios e o vindouro carregava inesgotáveis promessas de felicidade.
Imbuíamo-nos de resoluções para o próximo ano. Era nele que nosso sucesso iria desabrochar, que íamos ter um corpo mais sarado, começar a fazer cursos por diletantismo, experimentar o novo de qualquer natureza, deixar maus hábitos, adquirir bons, ler aquele clássico que faz parte dos “x” livros que devemos ler antes de morrer, telefonar para aqueles que fizeram parte do nosso passado e que insistem em se manter no presente, recrutar novos amigos, melhorar de emprego, viajar sem fronteiras, limpar e organizar aquela pilha de CDs, trocar de carro, aprender a tocar um instrumento, tomar a iniciativa de dar o primeiro beijo; enfim, desbravar um novo mundo e tingir sua vida com ele.
Acontece que, prá bem da verdade, as vontades que têm muito pouca praticidade, acabamos por esquecê-las. Então, como bons seres utilitários que somos, postergamos mais uma vez nossos desgastados desejos para o próximo ano e por aí vai.
Faltando poucos dias para terminar 2010, tenho uma proposta diferente, por que não apostarmos na felicidade ainda dentro desse ano? Mais ou menos assim: “antes de terminar o ano eu vou me revelar, tomar um porre de champanhe bom, escrever aquela carta de amor, dar aquele telefonema, começar a ler o tal clássico, dizer que amo sem a garantia de reciprocidade, beijar sem pudor, brigar de vez ou fazer as pazes...” Assim, se nada disso der certo, você joga a responsabilidade para o senhor cronos, aquele que vai olhar pelo seu emprego, carro, limpeza e organização. O ano novo é sempre competente nesses assuntos. Agora, para estas outras coisas que não levam a lugar nenhum, use o ano velho. Simples, aproveite para arriscar neste restinho de ano já que o próximo está profeticamente designado a dar um jeito mágico em tudo. Não há o que temer. Feliz Ano Velho!
quinta-feira, 23 de dezembro de 2010
"Já morei em tanta casa...
"Já morei em tanta casa... ... que nem me lembro mais”, cantava Renato Russo no início dos anos noventa. Na época, havia um par de anos que morava em São Paulo e já pensava que a música se aplicava a mim, pois pipocava de uma morada a outra com certa frequência. Meus endereços e números de telefone mudavam tanto que minha família já não usava mais caneta para anotá-los, adotaram o lápis e a borracha. Quase trinta anos depois, me dou conta de que naquela época habitei sim mais casas do que gostaria, mas lembrava de todas elas. Hoje, acredito que algumas devem ter sido sequestradas da memória ou estão lá nos recônditos do meu inconsciente. Entre essas, há uma em especial, que mesmo que quisesse esquecê-la, tem vida própria e volta-e-meia aparece para mim em forma de sonhos, fisgadas ou cheiros, esteja eu perto ou longe de seu sítio. É a casa onde passei minha infância. Esta casa de madeira, verde com janelas e portas marrons, impregnou-se em mim de uma forma, que nem os mais sofisticados achados da ciência são capazes de fazerem-na ir embora. Mas vamos ao presente. Por ora, habito uma casa antiga, com madeira pesada no chão, pé direito alto, moldura desenhada nas janelas e portas, paredes largas, estrutura de pedras. Alguém caminha na sala e um rangido invade a casa toda, como se a madeira emitisse suspiros distantes. Pelas portas e janelas poderia atravessar um gigante. A casa impõe-se à leveza embrutecida da modernidade. É como se a anciã ranzinza dissesse, não adianta me decorar com móveis e objetos de vanguarda, eu sou uma casa velha, amarelada pelo tempo, sóbria e endurecida pela história. No subsolo, há mais da mesma casa, um porão que mais parece uma masmorra, o tal do Keller. Acho que Keller foi uma das primeiras palavras no idioma que aprendi. Todas as casas antigas têm um e se fala dele com certa deferência. No meu livro de alemão tem um capítulo destinado a esse espaço. É uma espécie de entidade a ser respeitada. Para mim, era somente um lugar inóspito, úmido, sem aquecimento, janelas ou madeira cobrindo o chão. No meu entender, lá se colocavam coisas velhas e inúteis que os moradores queriam tirar de vista, mas que não queriam se desfazer de jeito nenhum. Mas também é um depósito de comida, muita comida e bebida. Sacos e mais sacos de batatas e cebolas, litros e mais litros de água e cerveja. Os mantimentos que ficam armazenados nesse porão dá a impressão de que para os alemães uma famigerada guerra está sempre à espreita. Mario Quintana dizia que as casas, assim como as pessoas, possuem alma. Acredito que sim, mas não todas. Não me lembro mais de todas as casas por onde passei, mas saberia reconhecer em quais habita uma alma. Aqui é uma delas. Ancestrais portas e janelas, surrado chão de tábuas que estremecem ao menor toque, paredes grossas e calejadas dialogam noite e dia.
sábado, 18 de dezembro de 2010
A sustentável leveza da mala
Viajaria no dia seguinte e ainda não havia feito a mala. É no singular mesmo, não importa se serão quarenta e cinco dias ou dois, a mala é uma só. Sob certos aspectos, isso poderia significar estar subjetivamente mais afinada com o comportamento masculino do que com o feminino. Porém, não é bem assim. Não sou econômica com o tempo que gasto, na verdade ganho, no meu banho, tomando o meu café ou lendo o meu jornal. Minha economia resume-se às coisas que carrego dentro de uma mala. Tanto faz ir a Porto Alegre para um fim-de-semana ou aventurar-me por um mês em um lugar gelado. Porto Alegre, então, nem se fala. Lá, uso e abuso das roupas e calçados da minha irmã. Geralmente, vou só com a roupa do corpo. Pura preguiça e, claro, é muito bom o aconchego de ir para uma casa que sinto como se fosse a minha. Antes mesmo de ler Borges, já viajava “leve”. Não por consciência poética. É preciso nascer com alma para isso. Mas pelo fato de que não ter que pensar no que levar e carregar poucos pertences me proporciona uma deliciosa sensação de liberdade e independência. Aliás, meu estilo, ou falta de, já deu o que falar. Uma vez, no salão de beleza, sentada esperando para cortar o cabelo, o cabeleireiro me perguntou antes de passar a tesoura: “qual é o teu estilo?”. A amiga que estava comigo conta que eu parei, pensei, olhei para o espelho, olhei para ele um tanto sem graça e respondi: “meu estilo... meu estilo é meio assim... um pouco sem luxo, sabe?” A história foi compartilhada e, às vezes, esse “muito sem luxo” é aplicado indiscriminadamente a várias situações. Resumindo, arrumo minha mala no dia mesmo de viajar. Algumas vezes, apenas umas horinhas antes de sair de casa. Mas, por que falar disso? Sim, é claro, por que isso nem sempre sai barato. Já passei por muito embaraço. Fui a um evento onde a única mulher a usar calças ao invés de vestido de festa era eu. O pior, não tive como dar meia-volta, a anfitriã já havia me visto. Desconforto total. Hoje, em Zürich, onde mulheres e homens parecem estar desfilando em uma passarela constantemente, estou meio deslocada de novo. Cabelos lisos, louros e diligentemente arrumados, peles maquiadas, pescoços longos enrolados por cachemires coloridas, casacos saídos da capa da Vogue, ruas perfumadas pelas moças que passam. E eu aqui, muito sem luxo. Cheguei do jeito que vim, sem saber ainda com que roupa eu vou para me misturar a esse povão suíço, com seus cinco idiomas, com seus queijos furados, sua sofisticada variedade de chocolates e moeda própria. É, a Suíça não aderiu ao Euro, essa moedinha sem luxo. Parece que não fazer parte da Comunidade Européia e empenhar-se em manter seus Francos Suíços, seja a estratégia que proporciona aos suíços a desejada sensação de liberdade e independência.
terça-feira, 7 de dezembro de 2010
sexta-feira, 3 de dezembro de 2010
O amor de malas prontas
Quando o amor acaba, deixa um rastro. O amor não acaba e parte. Acaba e fica. O amor se fortalece e se alimenta de sua ausência. É uma espécie de corredor vazio. Não há nada lá, nem mobília, nem quadros, nem tapetes, nem luminárias. É só um longo e asfixiante breu que você tem que transpor. A cor desbotada das paredes, a falta de janelas, de ar, de luz natural, o assoalho sem brilho, o teto escuro.
Agora, quando o amor acaba, despede-se e vai embora sem lamentos ou desatino, é por que há muito tempo não estava mais lá. Se você não ficou atordoada, enraivecida, deprimida, agonizando sem estar morrendo, e se um corredor vazio é somente um corredor vazio, é por que quando partiu, o amor já estava alhures. Havia debandado antes, bem antes de fazer as malas.
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