terça-feira, 27 de julho de 2010

Gatos


Os gatos já são lordes por natureza. Agora, imaginem um gato inglês, senior de nove anos, lindo, bem nutrido e idolatrado pelos seus donos. Assim é Bentley, sóbrio e, a maioria das vezes, indiferente aos apelos dos hóspedes carentes. De vez em quando, ele até te permite acariciá-lo, dá uma uma ronronada, ou se esfrega na tua perna. Mas, que fique bem claro, é só quando ele quer. Do contrário, põe de lado sua pose de lorde inglês, e parte para cima com uma reação nada contida. Tive muitos gatos quando era criança, agora tenho cães. Não sabia mais como era ter um gato me fazendo companhia. Confesso que estou gostando. Muito.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Máximas de Guimarães Rosa em Grande Sertão Veredas

"Viver é negócio muito perigoso..."
"Ser forte é parar quieto; permanecer."
"Desespero quieto às vezes é o melhor remédio que há. Que alarga o mundo e põe a criatura solta."
"...eu não sentia nada. Só uma transformação, pesável. Muita coisa importante falta nome."
"Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura."
"Coração mistura amores. Tudo cabe."
"O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem."

Poesia nunca é demais

"A função da arte/1

Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar.
Viajaram para o Sul.
Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto o seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:
- Me ajuda a olhar!"

Eduardo Galeano em "O Livro dos Abraços"

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Adiamento

Certa vez, articulei o poema de mesmo nome do título com o tema da neurose obsessiva, com a idéia de ilustrar uma questão crucial dessa estrutura. Um dos sinais evidentes no discurso dos obsessivos é a procrastinação. Uma ruminação de pensamentos inócuos e repetitivos que ficam circulando em todos os espaços da mente e que se espalham pelo corpo também. É de cravar. Pensa-se no que poderia ter sido, no que se deveria ter dito e no que não se deveria ter ouvido – todas representações do passado. Ou então em como será daqui para frente, o que fazer, o que falar, no que se transformar – tudo representações do futuro. Bom, já deu para perceber que o que falta nesse jogo estéril e histérico de quem padece dessa neurose são as representações do presente. O "aqui" e o “agora” foram interditados, ou estão adiantados ou atrasados no tempo do obsessivo. Resta, assim, se lamentar e se consolar com Pessoa, que, sem intenção alguma, faz paródia com o neurótico obsessivo.

“Adiamento

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas em um edital...
Mas por um edital de amanhã
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...

O porvir...
Sim, o porvir...”

Fernando Pessoa, em Tabacaria e Outros Poemas 14/04/1928

quarta-feira, 21 de julho de 2010

À Prova de Morte - Dir. Quentin Tatantino

Última sessão de domingo, amigos cinéfilos e eu fomos conferir não o mais recente trabalho de Tarantino, porque Bastardos Inglórios foi o mais recente, mas o mais polêmico entre eles – a crítica caiu matando.
Inevitável não psicanalisar sobre ele. O filme tem como protagonista o ator Kurt Russell, numa ótima atuação, fazendo o papel de um perversão escrachado - adornado com todos os clichês da maldade. Quando digo perverso, refiro-me às variadas definições que a palavra traz. Vou explicar melhor. O termo “perversão”, em seu uso corrente, tem uma conotação desagradável, negativa. Para a psicanálise não é a regra. A perversão constitui uma estrutura, ao lado da neurótica e da psicótica. O sujeito perverso, de um modo bem sintético, é aquele que conhece a lei, conhece a castração, mas a renega, utilizando-se do artifício do fetiche para tamponar a falta constituinte de todo o humano. Não dispomos, infelizmente, senão de uma única palavra – perverso - para designar indistintamente os sujeitos marcados pela perversidade e aqueles que sofrem de perversão dos instintos elementares e que configuram a estrutura perversa postulada por Freud e revista por Lacan. Aliás, o uso confunde abusivamente essas duas categorias, entre as quais existem obscuras e freqüentes associações. O perverso de estrutura clínica, afirma Lacan, é aquele que sabe do gozo do outro e se coloca a suturar sua falta, fazendo com que o outro acredite que não há castração. Cair nas teias nefastas do perverso não é prerrogativa de poucos. É muito fácil. Se ele sabe do seu modo de gozar e te oferece exatamente o que te faz gozar, como não cair? Lembram do Barba Azul, do Don Juan, maníaco do parque? O que eles tinham em comum, a não ser o fato de se darem de corpo e alma a obturar o desejo do outro? Por que aquelas mulheres caíam nesse logro? Elementar, não é?
O único consolo é saber, tanto pela teoria quanto pela prática, que nem todo o algoz foi um dia vítima, mas que toda vítima, quando sobrevive, incorporará um algoz mais competente que o seu próprio mestre.
O filme trata disso.
Deixo para vocês a decisão de assistir ou não ao filme. Não estou recomendando, pois como o tema mexe com os nossos diabinhos, uns gostam e outros nem tanto.
“O que induz a gente para más ações, estranhas, é que a gente está pertinho do que é nosso, por direito, e não sabe, não sabe, não sabe!” Guimarães Rosa em Grande Sertão Veredas

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Há Pessoa e Pessoas

Numa conversa prosaica sobre poesia, uma amiga me falou que ouviu de uma outra amiga uma observação curiosa. Esta última falando sobre poesia com o namorado fez a seguinte asserção: “o que você quiser saber sobre a vida está em “Tabacaria”, tá tudo lá.”
Não preciso nem dizer da sede que tive de chegar em casa para pegar os meus Pessoas. Agarrei-me aos livros com todos os sentidos aguçados. Uma pueril emoção se instaurou em mim ao ler a palavra “Tabacaria” ainda no índice. O engraçado é que li este poema mais de uma vez e até cheguei a articular algumas de suas estrofes com a psicanálise. Mas daí a uma pessoa ter a intrepidez de afirmar que “tudo” que você quiser saber sobre a vida está lá...
... e não é que tá mesmo!
Neste momento, você que, conheça "Tabacaria" ou não, goste de Pessoa ou não, deve estar louco para chegar em casa, ou numa livraria, ou num computador só para conferir o axioma proposto por essa pessoa que nem conheço, e que me agraciou com seu dito.
Separei uma estrofe só para dar água na boca. Não, na boca não. A água que vai dar é nos olhos.

“Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara.
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.”

Álvaro de Campos em 15/01/1928

E durma-se com um barulho desses...

Insônia e Ratos

Clarice Lispector sofria de insônia. Acho que ela debutou nas pílulas para dormir. Contam seus amigos mais próximos, que muitas vezes ela exagerava na dose. Ficava sem dormir à noite e durante o dia caía pelas tabelas.
Quem padece desse mal sabe muito bem o que é isso. Engraçado perceber que quando investigamos a intimidade dos artistas, a troca do dia pela noite é fato trivial.
Não sei o que acontece, mas a noite é inspiradora, a solidão das horas vazias, o barulhinho do relógio na parede, a escuridão lá fora. A impressão que tenho é que durante a noite estamos mais perto do nosso inconsciente, esse buraco negro intangível que não controlamos, pois voluntariosamente autônomo quando “ele” quer dar as caras. Freud dizia que o homem havia sofrido três quedas narcísicas drásticas: a primeira, quando lhe é revelado que a terra não é o centro do universo, a segunda quando Darwin diz que somos parentes da macacada e a terceira quando o próprio Freud, a partir da descoberta do inconsciente, afirma que não somos donos da nossa própria casa - é o inconsciente que manda e desmanda. Se Freud vivesse agora iria saber que ainda há uma quarta queda narcísica:.. há, há, há, o código genético de um humano está mais próximo dos ratos do que dos gatos! Quem diria? Nosso DNA é mais parecido com o dos bichos repulsivos que vagueiam pelos esgotos do que com o dos inocentes gatinhos peludos que são predadores dos primeiros? Que doideira! Não a constatação dos cientistas! Mas, como de Lispector e insônia vim parar em ratos? Hum, tenho uma vaga idéia, é que me lembrei do Chico, insone incorrigível. Em minha opinião de fã incondicional, acredito que a sua mais antenada e criativa composição desse século seja “Ode aos Ratos”. Nessa música Chico, inspirado pelas descobertas científicas sobre os genomas, lembra aos pobres humanos que dentro deles habita um roedor nada seletivo que anda pelas sarjetas e come o que tiver pela frente, com seu “focinho gelado e couraça de sabão”.
Em um show de Mônica Salmaso num tributo a Chico que assisti, ela conta algumas conversas de bastidores.
Dizem que o Chico antes de concluir a música, ligou para o Paulo Vanzolini, músico e biólogo apaixonado, para perguntar como eram os ratos, pois queria ser o mais fiel possível quando fosse descrevê-los. O diálogo se deu mais ou menos assim:
- “Oi Paulo, aqui é o Chico, tô ligando porque sei que você que tem a maior afinidade com bichos e precisava que você me descrevesse como são os ratos, pois estou compondo uma música sobre eles.”
- “Ah Chico, você que já inventou tantos adjetivos para falar das mulheres, então mente aí qualquer coisa para os ratos.”
- “Não dá Paulo, pelos ratos eu tenho o maior respeito...”
Ah, esse Chico, além de tudo é espirituoso...
Voltando à insônia, os ratos são notívagos por motivo de sobrevivência, para fugir dos predadores, pois à luz do dia são presas fáceis. Seguindo esta lógica, estariam os insones, ao permanecerem de vigília, também fugindo de algo, seria, talvez, dos desígnios do seu próprio inconsciente? Boa pergunta. Enquanto isso, depois dessa revelação da ciência, os insones podem ficar mais sossegados. Não estão sozinhos em suas noites longas e não estão acompanhados por meros desconhecidos. Seus companheiros são fraternos. Pois é. Os seus “irmãozinhos” de nariz gelado, dentões afiados, orelhinhas pontudas e passinhos rápidos, na calada da noite... estão bem felizinhos e acordados. Muitos deles até assombrando os sonhos dos infelizes insones quando, por exaustão, conseguem dar uma cochilada.

Lembrei agorinha do “Homem dos Ratos” – caso paradigmático de Freud sobre a neurose obsessiva -, mas isso já é assunto para outra hora.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Amigos, psicanálise e poesia...


...uma coisa leva à outra.

Freud acreditava que o artista expressa em sua obra uma intenção e que essa intenção deveria produzir em nós a mesma constelação mental que o artista teve no momento da criação. A intenção do artista poderia ser comunicada e compreendida em palavras junto com todos os outros fenômenos da vida mental. É bom lembrar que Freud usa o verbo no futuro do pretérito: “deveria” despertar em nós... Sabemos que nem todos têm a possibilidade – e isto não é uma questão intelectual - de serem capturados pelos sentimentos que os artistas experimentaram no momento do despertar, a ”bon-heur” como diria Lacan, a hora boa, a sorte feliz, pois essa hora é tanto imprevisível quanto fugidia.
Bom, vamos ao ponto aonde quero chegar.
Hoje, minha “bon-heur” se deu no encontro com uma amiga que, generosamente, me fez reencontrar Drummond.

“Ausência

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão apegada,
aconchegada nos meus braços,
que rio, danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.”

Carlos Drummnond de Andrade (1902-1987)

quarta-feira, 14 de julho de 2010

A sustentável leveza do cão


“Todas as famílias felizes são iguais. As infelizes o são cada uma a sua maneira.” Com essa introdução, inicia o russo Tolstói o seu romance Ana Karenina, publicado, pela primeira vez, em 1873. A personagem principal, aquela que dá o título à obra, é uma aristocrata russa, que supostamente possui alguns dos adjetivos que os simples mortais mais desejam: riqueza, beleza, poder, popularidade. A despeito de tudo isso, Ana Karenina sente-se entediada e vazia. Esses sentimentos só regridem quando Ana Karenina encontra aquele que arrebata a sua alma e faz sua razão definhar, o irresistível oficial Conde Vronski. A partir do caso extraconjugal de Ana com o Conde Vronski a trama se desenrola. Mas não pensem que o romance se reduz a um drama passional. Tolstói vai além. As pessoas que habitam seu romance estão todas ocupadas com o insondável, o intangível da existência humana e passam o romance todo a tentar desvendar o inescrutável da falta a ser.
Na esteira de “Ana Karenina” está “A Insustentável Leveza do Ser” (1983). O tcheco Milan Kundera, no seu capítulo primeiro, alude a Nietzsche e a sua lei do eterno retorno. “...pensar que um dia tudo vai se repetir tal como foi vivido e que essa repetição ainda vai se repetir indefinidamente! O que significa esse mito insensato?” Ao referir-se a Nietzsche e a sua lei logo de cara, Kundera acolhe esse “ eterno retornar”, pois os questionamentos sobre a obscuridade perturbadora da existência de seus personagens são equivalentes àqueles nos quais os personagens de Tolstói estão mergulhados. Inclusive, não é por acaso, que ele ressuscita, através de Karenin, a alma desassossegada de Ana Karenina. Karenin é o nome do cão dos insustentáveis de Kundera: Tereza, Tomas e Sabina. No entanto, Karenin, por não pretender outra coisa, senão ser um cão, faz com que alguns sentimentos de calmaria e alento tenham lugar na mente dos seus donos atormentados.
Pensando ainda no eterno retorno, o que teria a insatisfação e inquietude permanente de Tereza, Tomas e Sabina em comum com as vidas sombrias e errantes de Ana Karenina, Tolstói e Nietzsche? Talvez, a melancolia nostálgica de todo o humano em busca do objeto para todo sempre perdido, do qual ele não tem a menor idéia do que seja e que, mesmo assim, insiste em nomear.
E o cão? O cão não se sabe cão e, muito menos, de onde vem Karenin. Bom para ele. Triste. Muito triste para nós.

p.s. minha inspiração para escrever sobre Ana Karenina surgiu a partir dos escritos corajosos e sensíveis postados em um outro blog também dedicado à insustentabilidade da alma.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Psicanálise e Literatura

Freud já reconhecia as estreitas afinidades entre a psicanálise e a literatura por conceber que psicanalistas e escritores ocupam-se da subjetividade e valem-se da palavra para tentar dar um pouco de alento às indagações humanas.
“A familiaridade entre a psicanálise e a literatura, tendo os dois, origens sediadas em nossa vida onírica inconsciente e ambas lidando basicamente com a palavra permite o estabelecimento, entre elas, de iluminação mútua.”

Não precisa dizer mais nada, é só sentir...

“Aprendo com abelhas do que com aeroplanos,
É um olhar para baixo que eu nasci tendo.
É um olhar para o ser menor, para o
insignificante que eu me criei tendo.
O ser que na sociedade é chutado como uma
barata – cresce de importância para o meu
olho.
Ainda não entendi por que herdei esse olhar
para baixo.
Sempre imagino que venha de ancestralidades
machucadas.
Fui criado no mato e aprendi a gostar das
coisinhas do chão –
Antes que das coisas celestiais.
Pessoas pertencidas de abandono me comovem:
tanto quanto as soberbas coisas ínfimas.”

Manoel de Barros, poeta mato-grossense, em o “Retrato do Artista Quando Coisa” (1998)

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Almas à venda - Dir. Sophie Barthes (2009)


No último domingo, assisti ao filme “Almas à Venda”, cujo título original é “Cold Souls”. É no mínimo curioso imaginar a situação. Durante o ensaio de uma nova montagem da peça "Tio Vânia" de Tchecov, o ator que vai representar tio Vânia vê-se assombrado por uma angústia inominável, carregada de sintomas insuportáveis, que não lhe permite dar o tom ao personagem - tio Vânia não deve ser nem cômico nem trágico. O seu agente, afetado pela sua dramática condição, fala-lhe sobre um tipo de tratamento que pode ajudá-lo, mas ele ignora ambos. No entanto, mais angustiado fica ao chegar em casa e perceber que sua vidinha doméstica mostra-se um grande e inesgotável tédio. Mergulhado nesse desconsolo, nosso protagonista se dá conta que nem de sua mulher ele dá mais conta. Ela está visivelmente insatisfeita. Sem saber direito o que fazer, senta-se numa poltrona e começa a folhear uma revista desassossegadamente. Fato nada surpreendente: ele encontra uma propaganda sobre o mesmo tratamento mencionado pelo seu agente nas páginas da revista. A clínica que presta os serviços chama-se “soul storage” - depósito de almas - e é para lá que, reticentemente, ele se encaminha. O tratamento consiste na extração da alma atordoada do sujeito, retirando de seu ser toda a intranquilidade, os pensamentos obscuros, a tristeza e o medo, deixando em seu lugar um pacífico vazio, um nada. O mais inusitado é que a alma ficará congelada nesse depósito até que o seu proprietário decida resgatá-la. Durante esse período, o paciente fica desalmado. Acontece que, passados alguns dias, da tal da deserção da alma, o camarada começa a se sentir estranho, oco, opaco e passa a desejar suas aflições de volta. Decidido, ele retorna à clínica e reivindica sua alma penada ao médico responsável. Só que o cientista, também assertivo, convence-o de que, reimplantar sua velha alma, seria o mesmo que uma condenação à infelicidade. Preocupado com aquele pobre coitado desalmado, o inescrupuluso médico sugere que ele alugue a alma de um outro alguém. Inclusive, havia uma lista de almas a serem alugadas, como as de cientistas prêmios Nobel, de compositores brasileiros, de poetas russos, entre outras. Mas, para um ator que precisava atuar Tchecov na Broadway, é claro que ele não pensa duas vezes e se atira de cabeça na alma de um poeta russo. No início, tudo parece perfeito. Ele se sai bem na peça, passa a ter desejo pela própria esposa, sente-se renovado com a pregnância daquela alma alheia. O único senão é que decorrido algum tempo - não muito -, tudo começa a ser muito para ele. É muita sensibilidade. É muita vitalidade. É muita voracidade. Resultado: ele volta à clinica porque não consegue sustentar a tamanha subjetividade daquela alma poética e deseja desesperadamente sua alminha sintomática de volta.
O restante do filme não vale a pena contar, é previsível e cabe bem no “american happy end”.
Mas, para quem gosta de psicanálise, já dá o que pensar.
Colette Soler dialoga com esta temática em “L’ídentificacion au symptôme... ou pire” (1999):
“Quando Lacan diz que identificar-se ao sintoma é o que pode ser feito de melhor, ele deixa a entender claramente que há outras possibilidades... piores”.

domingo, 11 de julho de 2010

Vale a pena ver de novo?

O poeta Quintana uma vez nos disse assim:

“Das Ilusões

Meu saco de ilusões, bem cheio tive-o.
Com ele ia subindo a ladeira da vida.
E, no entretanto, após cada ilusão perdida...
Que extraordinária sensação de alívio!”

Será?
Nada mais ocupa tanto nossos pensamentos do que uma relação amorosa. Sabemos disso sem precisar ir muito longe. É só lembrar quais são os assuntos privilegiados nos bares, nos lares, nos consultórios e nas cartomantes ou dar uma espiada nos livros de auto-ajuda ou nas revistas, para constatar o quanto essa temática é contemplada. Quem é da área psi ou tem afinidade com ela, já percebeu que as relações afetivas e as suas representações comportam a fatia mais generosa da vida. Basta ouvir durante algumas semanas as queixas de nossos pacientes para afirmar com propriedade que o problema, quando decantado, gira em torno das tramas amorosas. Quando falo de amor, quero deixar claro aqui que estou me referindo ao amor romântico. Um tipo específico de amor que arrebata e fascina suas vítimas, propondo-se a preencher o vazio constitutivo da falta de sentido da existência. Um amor pueril e vigoroso que promete curar feridas, nos deixar em estado de graça, trazer paz e emoção – até onde sei inconciliáveis – e, vejam só, promete ainda nos levar à plenitude das satisfações – até onde sei inatingíveis. Essa qualidade de amor consome noites de sono de seus amantes e amados, que por sua vez consomem consultas, antidepressivos e calmantes. Seguindo essa linha de raciocínio, então quer dizer que o amor romântico promete aquilo que não pode cumprir, iludindo-nos como bobos? E por que diabos embarcamos uma, duas, inúmeras vezes no seu discurso? Por que não ouvimos o poeta gaúcho e desistimos? Ah, já sei, por que existiu um outro poeta, bem mais popular que o meu conterrâneo, que nasceu mais tarde e partiu mais cedo e que acreditava nas insígnias desse amor. Aliás, esse poeta viveu e morreu de amor, coroando o amor romântico com as mais belas poesias, esteja este amor mentindo ou não. Além de fazer do amor sua prática, nosso poeta e diplomata ofereceu-nos alguns conselhos. Conselhos não, conselhos são para quem não tem certeza do que diz e Vinicius não tinha dúvidas. Seguramente, com uma sabedoria ancestral e ao mesmo tempo juvenil, Vinicius afirma convicto que quem deserta do amor ou se exila do seu logro ainda vai pagar caro por isso. Na dúvida, vale a pena conferir seus oráculos!

“Testamento

...você que não gosta de gostar,
para não sofrer, não sorrir e não chorar,
você vai ver um dia
em que fria você vai entrar!
Por cima uma laje, embaixo a escuridão,
É fogo, irmão! É fogo, irmão!”

“Como dizia o poeta

Quem já passou por essa vida e não viveu
Pode ter mais, mas sabe menos do que eu,
Porque a vida só se dá para quem se deu,
Prá quem amou, prá quem chorou, prá quem sofreu.
Quem nunca curtiu uma paixão, nunca vai ter nada não...
... Ai de quem não rasga o coração, esse não vai ter perdão.”

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Quer ir ao cinema comigo?


Discordo de Sartre quando diz que o inferno são outros. Acredito cegamente que o inferno mora bem mais perto de nós do que imaginamos. Minha má fama de ser preocupada, patologicamente pontual - normalmente chego antes do programado -, sistemática e previsível já corre solta.
Acontece que, quando o assunto é cinema, esses meus traços tão pouco apreciados pela maioria dos meus amigos, potencializam-se bem e é aí que o bicho pega. Ir ao cinema para mim implica uma preparação para algo solene, tal uma noiva no dia do sim. E assim como o título da película do francês Serge Bourguignon, o evento acontece “sempre aos domingos”. Nesse dia, o cinema e eu temos um encontro marcado há aproximadamente uns bons doze anos. A essas alturas, sei que os psicanalistas e os psicanalisados de plantão acabaram de me diagnosticar. Sem problema, já esperava por isso. Bom, o fato é que no dia D, gosto de sair com antecedência, dirigir com calma, procurar pacientemente uma vaga para estacionar, caminhar tranquilamente até o meu templo sagrado, comprar meu ingresso e sentar para tomar um café. Depois, na hora de ir para a sala, gosto de entrar enquanto a tela está escura e as luzes ainda acesas. Sento na última fileira, não importa quantos degraus tenha que subir. Isso para evitar que os frequentadores que venham a se sentar na fileira atrás de mim fiquem empurrando com seus pezinhos a minha poltrona, fato bastante ordinário. De preferência, gosto de sentar bem longe de todo mundo e odeio quando chega alguém pontual ou atrasado e pergunta: “dá para pular uma cadeira?” Sem falar naqueles para quem cinema é sinônimo de restaurante, dando corda às salas de cinema que se comportam como tal. Continuando com a rabugice... e aquele barulhinho irritante dos saquinhos de balas? E as luzinhas dos celulares de quem vai ao cinema para mandar torpedos? Sem contar aqueles seres, que são muitos, diga-se de passagem, que vão ao cinema para colocar o papo em dia.
No fundo, todo o problema se resume ao fato de que não faço parte da amostra saudável de pessoas que afirma com satisfação que cinema com diversão é pleonasmo. Não concordo, cinema é coisa séria.
Pois é... monsieur Jean-Paul que me perdoe, mas no escurinho do cinema, o inferno sou eu mesma.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Obrigada, hoje é segunda feira



Tenho ouvido e lido constantemente críticas à sociedade contemporânea. Concordo com a grande maioria delas. De fato, existe tudo em excesso, a tecnologia, as ciências, o consumismo desenfreado, a falta de educação de crianças, adultos e velhinhos; isso sem falar na destituição do silêncio, do simples e do natural. Ainda assim, numa noite dessas, tive de rever meus conceitos. Era uma segunda-feira, umas nove e meia da noite e acabava de sair do consultório. Confesso que já estava bem cansada daquele dia, mas imperava um calor araçatubense na nossa capital que era mais do que um convite a desviar do caminho de casa. A noite inspirava cerveja e conversa fiada. Mas, pera lá, era uma segunda-feira. Outra coisa, encontrar algum amigo que estivesse disposto e disponível em plena segunda-feira seria mais que um desafio. Liguei, um pouco encabulada, para a primeira amiga que pressupus estar nestas condições e obtive um não bem redondo, justificado pela simples máxima de que era uma segunda-feira. Passado o susto da descompostura, um pouco ressabiada, tentei mais uma, desta vez minha vizinha que mora do outro lado da rua. Ainda ao telefone com ela, ouvi barulho de outras vozes. Não cheguei nem a perguntar. Ela, à queima roupa, disse: “oi, vem para cá, estamos eu e mais dois amigos batendo papo e tomando cerveja.” Vale ressaltar que a dona da casa tinha trabalhado o dia inteiro, pego um trânsito daqueles, também estava cansada e blá, blá, blá... A moça que já estava lá, assim como nós duas, havia dado um duro danado naquele dia, como costuma fazer em praticamente todos os dias. O terceiro, único homem da história, cirurgião plástico. Ele, no decorrer daquela segunda-feira, havia redesenhado alguns de seus pacientes, transitado pelas mesmas vias infernais e estava visivelmente nocauteado, tal qual seu último cliente vaidoso, que aquelas alturas, ainda estava sob os efeitos da anestesia. Acontece que, nos tempos modernos, o desejo de um encontro para além do ninho familiar não é coisa de outro mundo. A possibilidade de conversar com os amigos se sobrepõe ao cansaço e às obrigações do dia seguinte - bom lembrar que no outro dia todos teriam um dia cansativo novamente. Enfim, os amigos encontram-se. Cada um conta um pouco ou muito de si. O papo vai rolando no calor da hora, sem censura, numa terna cumplicidade. Todos dividem o mesmo anseio: quebrar a rotina, esquecer que aquela segunda-feira era uma segunda-feira, que o trânsito de São Paulo castiga, que o trabalho, em alguns dias, é um pé no saco, que as paredes do quarto continuam lá, estáveis e previsíveis e que nada significativamente iria mudar, com ou sem cerveja. Foi muito bom corromper velhos hábitos que insistem em operar sobre nós. Saí de lá tão melhor, que resolvi escrever e agradecer ao mundo moderno por estes encontros não planejados, que até bem pouco tempo só teriam lugar entre os boêmios de carteirinha, os milionários excêntricos ou os marginalizados.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Insônia boa, insônia má


Chico Buarque, um dia, ao se referir ao tema, ousou dividi-la em duas: a insônia boa e a insônia burra. Inevitável não pensar em seio bom/seio mau, mas deixemos isso para os bebês de Klein. Em sua “humilde” opinião - Chico é devoto desse adjetivo e isso, diga-se de passagem, é só para quem pode – bom, continuando, a insônia boa, para o meu ídolo, é aquela de onde brota uma alegoria de idéias brilhantes ou soluções criativas, seja para uma palavra ou para uma nota que falta em uma canção ou simplesmente para ficar brincando com os pensamentos. Ainda, a insônia boa é também aquela que não te deixa dormir, com a singela intenção de não permitir que percas o contato com uma instigante inquietude da alma. Mas vale lembrar que essa falta de sossego, a qual Chico nomeia de bendito tormento, pertence à mesma categoria de insônia: é boa. Agora, vamos falar da insônia burra. Com essa espécie Chico não é nada condescendente, porque, muito indignado, reitera que ela é burra mesmo. “Esta última é quando, mesmo cansado, deita e não sabe mais como se dorme. Como se tivesse esquecido. É a insônia da angústia, da aflição, do cineminha incessante passando na cabeça, voltando com imagens incômodas... é a insônia improdutiva, estéril.” Compreendo literalmente o que Chico diz, pois compartilho dos dois tipos e a última realmente é uma tortura. É preciso fazer matrícula para se aprender como se dorme. Começa mais ou menos assim: deite numa posição confortável, feche os olhos, respire. É isso mesmo que você leu: feche os olhos e respire! Isso não é incrível? Calma, que isso não é tudo. Depois vem a melhor parte, o imperativo categórico: não pense em nada, absolutamente nada, nadinha mesmo. Facinho né? Feito tudo direitinho, o sono, que mais parece um prêmio acumulado da loteria, promete te encontrar para viver com você uma noite inesquecível... inesquecível? Sim, até a sua próxima noite de insônia burra ou boa. Qual era a diferença mesmo?

O que esperar de quem nos espera?


A maioria delas se parece tanto quando se trata de preparos para nos esperar. Muitas se esmeram dentro de suas cozinhas, copiando receitas, errando e acertando sobre as chamas acesas dos fogões. A minha não. Algumas ficam assoberbadas, limpando frestinhas, tapetes e sofás, só para que a casa se mostre para nós com cara de quem se importa com o ilustre visitante. A minha não. Outras tricotam um casaco inteiro se consumindo em horas de trabalho, simplesmente para nos dizer o quanto querem fazer parte de nossas vidas, pois, inevitavelmente, toda vez que vestirmos aquilo que foi um dia apenas um novelo de lã, pensaremos no tempo dedicado a cada ponto intermediado por aquelas mãos tão cheias de afeto. Mas a minha? A minha absolutamente não. Ela não fazia nem tricô nem crochê. Costura, bordados, ponto-cruz? Definitivamente, para o bem ou para o mal, nem pensar. A minha me esperava com recortes de jornais guardados desde a última vez em que estivesse estado lá. Eram páginas e mais páginas que, uma vez lidas por ela, eram cuidadosamente ocultadas em um lugar seguro, a fim de evitar que algum sujeito insano, não percebendo que havia mais vida nas palavras impressas dentro daquelas páginas do que fora delas, decidisse que aquele monte de papel velho deveria ir para o lixo. Era disso que ela gostava e era isso que ela tinha para me dar. Fui entendê-la muito mais tarde. Na verdade, foi só na hora de esvaziar seu apartamento. Foi só naquele dia que me dei conta de que o seu singular acervo de jornais amarelados, criteriosamente selecionados especialmente para mim, era a sua melhor declaração de amor e, definitivamente, minha herança mais fecunda.

domingo, 4 de julho de 2010

Os bichos dos meus livros de estimação


Lembro-me de todos os bichos da minha infância, de suas breves vidinhas e de suas mortes, sempre prematuras. Destes, trago muitas saudades e lembranças, mas o sofrimento de suas perdas foi acalmado pelo tempo. Agora, aqueles que foram personificados nos livros que li quando criança, estes se mantêm sempre vivos na minha memória e a dor de suas mortes foi recrudescida pelos recursos literários de seus criadores. Em "Meu Pé de Laranja Lima", José Mauro de Vasconcellos dá vida a uma árvore. O Pé de Laranja Lima era animado como um bichinho de estimação. Ele ouvia, falava, acalentava, oferecia seu regaço e amizade ao incompreendido e desamparado menino Zezé. Na solidão dos meus sete anos, sentada em um cantinho da biblioteca de meu colégio, chorava timidamente sobre as páginas que se seguiram ao corte da árvore de Zezé, as mesmas páginas onde escondia um rosto cheio de vergonha por estar ali chorando. Depois, foi a vez da Baleia, a doce e esperta cadela esquálida do igualmente morto de fome menino Fabiano em "Vidas Secas". Quando Graciliano põe o já tão sofrido menino Fabiano a se interrogar sobre a morte de Baleia, questionando se cachorros teriam alma e, presumindo que se por acaso tivessem, a alma da Baleia iria voar para um lugar repleto de preás; o danado do Graciliano conseguiu me infligir uma dor maior que Vasconcellos. No decorrer de minha vida, chorei incontáveis mortes de bichos, tantos que provavelmente não saberia referenciá-los todos aqui... uns meus, outros de amigos, alguns que conhecia só pelo nome e tantos outros da ficção. Hoje, bem distante dos meus sete, oito anos, continuo com a mesma sensação: os bichos inventados pelos seus criadores e mortos pelas tintas das suas penas provocam uma dor nada sútil, bem barulhenta e perene, talvez, simplesmente, por terem sido imortalizados naquelas páginas de pura beleza nos encontros inefáveis entre o humano e o não humano. Salve Baleia, Karenin e Quincas Borba, o meu e o de Machado!